O Festival A Porta é como uma Matrioska

por Idalécio Francisco,    1 Julho, 2019
O Festival A Porta é como uma Matrioska
Jonathan Bree

De 14 a 23 de Junho decorreu, em Leiria, o Festival A Porta. Esta quinta edição aumentou de tamanho e espalhou-se pelo centro da cidade. Invadiu a Rua Direita, a Villa Portela, a Fonte Luminosa, o Jardim da Vala Real, a Livraria Arquivo, o Jardim Luís de Camões, o Atlas Hostel, a Casa Plástica, o Centro Cívico, a Stereogun, o Teatro José Lúcio, o Mercado de Santana, entre outros locais. Invadiu portas e portas que ao longo do ano estão fechadas. Invadiu-nos. Entranhou-se em Leiria, nos leirienses e em todos aqueles que, por estes dias, passaram por cá. Actividades não faltaram desde exposições, concertos, workshops, artes visuais, visitas guiadas, jantares temáticos, programas diversos para toda a família. Desde a Portinha, com inúmeras oficinas paras os mais pequenos, até à dança criativa para maiores de cinquenta. Acima de tudo, houve festa, alegria e convívio. Houve amor. Amor também é isto e esteve bem presente nestes 10 dias. Para quem esteve, e para quem não esteve presente, deixamos agora o registo dos momentos mais marcantes. Fica o registo das portas que visitámos e dificilmente esqueceremos. Há Portas das quais depois de entrarmos não saímos da mesma maneira. Confirmem lá se não é verdade, basta espreitarem.

Jardim Cívico | Fotografia de Idalécio Francisco/CCA

Jardim Cívico

O projecto Jardim Cívico, que se localiza no Centro Cívico, foi levado a cabo pelo Coletivo O Til, um grupo extraordinário, empreendedor de designers e arquitectos. Foi, e é, um projecto bastante complexo que teve como objectivo a auscultação de vários moradores para saber o que achavam do centro cívico e do que gostavam que aquilo se tornasse. Este Colectivo promoveu inúmeras convocatórias de participação para a comunidade ajudar a criar sombras, decoração e tratar das hortas urbanas que foram construídas. Esta iniciativa começou no início de Junho e foi sendo desenvolvida ao longo do mês. O jardim está criado, começa agora o desafio. Tratar do que se plantou, cuidar para proliferar. Pomos agora à prova o sentido cívico de cada um. Na tarde de 22 de Junho, as bandas Bruxas/ Cobras, Slift e o Julinho da Concertina deram vida a este jardim.

Casa Plástica | Fotografia de Idalécio Francisco

Casa Plástica

No dia 14 de Junho, às 19h, inaugurou-se a Exposição de Artes Visuais intitulada “Nada Muda De Forma Como As Nuvens, A Não Ser Os Rochedos.” Esta exposição reuniu diversos artistas desde fotógrafos, pintores, escultores entre outros e todos partiram do mesmo pressuposto: a matéria – como matéria-prima ou como matéria num sentido mais poético, mais abrangente. Deram azo à sua criatividade e compuseram. Durante o festival esta “casa” (localizada no antigo edifício da EDP que se encontra, infelizmente, desocupado) recebeu inúmeras visitas guiadas de escolas. Cerca de 400 crianças passaram por lá. Ocorreu, igualmente, a apresentação do projecto “Sob o mesmo Céu” que é desenvolvido juntamente com a InPulsar e que conta com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian através da iniciativa PARTIS – Práticas Artísticas para a Inclusão Social. Para além desta vertente pedagógica e social, este local serviu de palco para diversas performances como foi o caso da performance sonora dos First Breath After Coma que falaremos de seguida.

Final das 24Horas dos FBAC | Fotografia de Idalécio Francisco/CCA

As vinte e quatro horas dos First Breath After Coma (FBAC)

Os membros deste quinteto leiriense foram artistas residentes da Porta. Tiveram múltiplas intervenções ao longo dos dias, desde a projecção do seu álbum visual NU no centro cívico ao concerto poderosíssimo no Jardim de Camões, que provocou uma falha de energia logo ao primeiro tema, à participação de alguns elementos em outras bandas como os Whales, La Baq ou Ricardo Martins e o seu projeto SILVAR. Foram fenomenais em tudo em que participaram, mas o momento de maior relevo, inigualável, foi as vinte e quatro horas de performance. Tocaram desde as 19h30 do dia 14 de Junho às 19h30 do dia 15 de Junho. Levaram o corpo, a mente, o som, a criatividade ao limite e o público, que os acompanhou, às lágrimas. Durante esse tempo houve sempre alguém a assistir e quando terminaram o sentimento geral era de admiração, de gratidão total. Até nos sentíamos pequeninos por termos presenciado algo tão grande, um feito tão grandioso. O cantor dinamarquês Casper Clausen que, nessa mesma noite, atuou a solo como Captain Casablanca, acabou por se juntar aos FBAC e deu o seu contributo durante cerca de seis horas. Gostou tanto da experiência que ficou até ao final do festival. Este espírito de partilha, de entusiasmo foi dominante.

Captain Casablanca | Fotografia de Idalécio Francisco/CCA

Jardim da Vala Real

Durante o primeiro fim de semana, o Jardim da Vala Real acolheu-nos a todos. Desde as 10h às 20h aconteceram iniciativas para toda a família. Houve yoga para crianças, insufláveis, pinturas faciais, uma redacção de mini-repórteres, conversas sobre o Sol, construção de uma cidade em cartão, piquenique de histórias, brinquedos em madeira e um cantinho do rock para os mais pequenos curiosos se aventurarem na mundo da música.

Jardim da Vala Real | Fotografia de Idalécio Francisco/CCA

Os familiares só tinham de vigiar, usufruir dos concertos (Ornitorrinco no sábado e Phoenician Drive no domingo) e beber uma cerveja, água ou sumo porque, felizmente, o calor fez-se sentir. Não faltaram as barraquinhas de comida e de algodão doce e pipocas para adoçar as horas. O DJ Cut!s e o Atlas Crew DJ set proporcionaram uma bela banda sonora para aqueles dois dias de puro convívio e descontração.

Fado Bicha | Fotografia de Idalécio Francisco/CCA

“Tudo isto existe, Tudo isto é bicha, Tudo isto é fado.”
No domingo, 16 de Junho, assistimos a um concerto memorável no maravilhoso terraço do Atlas Hostel. O frio apertava, mas nada nos fez demover, e às 22h entrou em cena o Fado Bicha. Este grupo é composto pelo Tiago Lila (Lila Fadista quando em palco) e pelo João Caçador (guitarrista). Mal chegaram a Lila Fadista exclamou: “Que lindo, caralho! O concerto de hoje vai ser dedicado ao Pinhal de Leiria, aquela grande bicha chamada Natureza.” Escusado será dizer que captaram, automaticamente, toda a nossa atenção. Este projecto surgiu há dois anos e tem como objectivo expressarem-se através do fado sem nunca perderem a sua identidade. Usam a palavra bicha como um instrumento de luta, de imposição de uma posição. Contam estórias de lésbicas, bissexuais, trans e interssexuais (LGBTI). Contam-nos estórias de vida, de luta, de abandono, de violência, de sobrevivência. A emoção que colocaram em todo o espectáculo foi perturbante e dificilmente esqueceremos a história da Alice, uma ativista trans, que todos os dias, antes de sair de casa, antes de se maquilhar mais ou menos, antes de se vestir de preto ou de forma mais exuberante, antes de colocar, ou não colocar, bijuteria, pensa no grau de violência que está disposta a aguentar naquele dia. Tantas vezes nos esquecemos do quão desumana pode ser a a Humanidade. Esta dupla despertou-nos abruptamente para essa realidade, que nós sabemos que existe, mas muitas vezes não queremos ver. O concerto acabou de forma tocante com a interpretação do tema “Cucurrucucu Paloma” de Caetano Veloso. Aplaudimos todos de pé, com um brilhozinho nos olhos e um murro no estômago. A vida é bicha.

Jantar Spicy Forrobodó | Fotografia de Idalécio Francisco/CCA

Jantares Temáticos
Nos noites de 17 e 18 de Junho tiveram lugar os já conhecidos jantares temáticos. Este Festival também abre as suas portas para a gastronomia mundial, para o convívio em torno de uma mesa, e o povo agradece. Ao todo ocorreram quatro jantares, dois por dia. Na segunda-feira houve o Barbecue à Americana e o Corridinho de Ramen que tiveram como sobremesas musicais (para ajudar a digerir as iguarias dos chefes) o Ben-Hart e o Daniel Reis, respectivamente. O Cambalacho de Caracóis e o Spicy Forrobodó, aconteceram na terça, e a sobremesa sonora foi servida pelo Mr. Bubble e pelo Homem em Catarse. Foram duas noites de conversa, animação, boa música e de “deixar água na boca”.

Luís Jerónimo | Fotografia de Idalécio Francisco/CCA

Teatro José Lúcio da Silva
No sexto dia de Festival o Teatro abriu as suas portas para três concertos e a casa encheu completamente. Por volta das 21h, enquanto as pessoas iam chegando, fomos surpreendidos por uma actuação, muito especial, do Luís Jerónimo (que fazia anos nesse dia). Apareceu na varanda exterior do edifício, rodeado de plantas, e começou a cantar e tocar “Can’t Get You out My Head” da Kylie Minogue. Prendeu a atenção do público que se aglomerou para assistir a mais dois temas. Soube a pouco, mas o JP Simões esperava por nós. Veio acompanhado do guitarrista Miguel Nicolau (Memória de Peixe) e apresentou o seu último álbum “Tremble like a Flower”. Como sempre, não desiludiu e animou a malta com as suas melodias e humor refinado. Terminado o concerto dirigimo-nos ao foyer para assistirmos a uma estreia na Porta. Ricardo Martins apresentou-nos uma preciosidade chamada SILVAR e reuniu sete bateristas de Leiria para um espectáculo exclusivo. Fomos bombardeados com composições rítmicas incríveis, parecia uma orquestra de baterias, de percussão sob o comando do maestro Ricardo. Já passava das 23h30 quando chegou a vez de Manel Cruz. A vida é nova, mas a qualidade mantém-se. A sua voz permanece potente, inconfundível e incansável, numa actuação que durou quase duas horas. É, inegavelmente, um grande cantautor da música portuguesa.

Manuel Cruz | Fotografia de Idalécio Francisco/CCA

Villa Portela
No feriado de 20 de Junho, as portas da Villa Portela, chalé do século XIX, abriu as suas portas, por volta das 16h, para uma tarde e noite de concertos e surpresas diversas. Esta majestosa Villa tornou-se, por uma dia, na Villa Omnichord. A Omnichord Records, dirigida pelo Hugo Ferreira, é muito mais do que uma editora é uma família. Invadimos e lotámos a “sua casa” para assistir a concertos diversos desde Surma, Labaq, Whales, Jerónimo, Obaa Sima e Few Fingers.

Surma | Fotografia de Idalécio Francisco/CCA

Alguns elementos dos First Breath After Coma entraram em algumas autuações provando, uma vez mais, a união, a amizade que estas bandas têm entre si. Mais uma vez, não faltaram as barracas de comida, de bebida, o porco no espeto e assim passámos um serão bem agradável no seio desta “família” cada vez mais numerosa e talentosa. Têm levado a sua música alternativa além fronteiras e a cidade da Lis tem um orgulho tremendo nisso.

Bruno Pernadas | Fotografia de Idalécio Francisco/CCA

Jardim Luís de Camões/ Rua Direita e Transversais
Na sexta-feira entrámos na recta final e a Porta assumiu um tom, ainda, mais festivo. Este oitavo dia de Festival começou em modo tropical com os brasileiros Venga Venga. Já anoitecia quando começaram a actuar no largo da Fonte Luminosa. Seguimos para o Jardim de Camões onde decorreram três concertos. Os talentosos First Breath After Coma abriram as festividades com tal pujança que, no primeiro tema, aconteceu logo um problema técnico originando um corte de energia total. Felizmente foi rapidamente resolvido. Seguiu-se o jazz, pop animado do Bruno Pernadas e por último o rock do Níger trazido pelo músico e compositor Mdou Moctar. Animaram a malta e em espírito de festa seguimos até à Stereogun. Meneo entregou-se de tal maneira que acabou a sua performance literalmente nu. A noite terminou como começou com os Venga Venga agora em modo DJ Set. Abriram uma porta e levaram-nos numa viagem sonora por todas as partes do mundo.

Rua Direita | Fotografia de Idalécio Francisco/CCA

No sábado, a Rua Direita (artéria principal e original deste Festival) e outras ruas transversais transformaram-se num enorme atelier de oficinas e instalações diversas. No Palco Larguinho havia, literalmente, uma “Piscininha” o que foi o deleite das crianças e não só. Este largo possuía um pequeno palco onde atuaram, ao longo da tarde, os franceses Fun Fun Funeral, o baterista/ percussionista João Pais Filipe e o cabo verdiano Claiana que pôs os mais miúdos e os mais graúdos a abanar o esqueleto. Das 11h às 20h, esta rua e ruelas apresentaram uma programação vasta e diferente para toda a família. Abriram-se portas de locais abandonados (que escondiam no seu interior recantos mágicos), os comerciantes abriram os seus estabelecimentos para servirem de palco a mini-concertos como foi o caso do Espaço Eça, da Chapelaria Liz, da Chapelaria Fonseca e da já afamada Oficina do Sr. António. Houve a Feira Bandida e a Feira Independente. Houve vida. Muita vida. Muitas portas abertas para entrar e descobrir novos universos.

Meneo | Fotografia de Idalécio Francisco/CCA

O momento alto da noite aconteceu no Jardim de Camões com a estreia nacional do cantor, compositor, multi-instrumentista Jonathan Bree. Veio da Nova Zelândia até Leiria apresentar-nos o seu mais recente álbum “Sleepwalking” e deixou-nos completamente rendidos ao seu talento. Superou qualquer expectativa que pudéssemos ter. Que privilégio assistir a esta banda (gratuitamente) no centro da nossa cidade. Também actuaram neste espaço os ingleses The Physics House Band e os The Mauskovic Dance Band. A sua música psicadélica com influências sonoras de vários cantos do planeta pôs a plateia a gingar e, neste ritmo, seguimos até à Stereogun para acabar a noite ao som dos Solar Corona (que deram um concerto estrondoso) e o DJ Fitz.

Stereogun

A Stereogun foi mais uma parceira deste Festival. Para além dos concertos que, anteriormente, já referimos temos de destacar a estreia do projecto leiriense Ayamonte Cidade Rodrigo (que nos mostraram o seu mundo sonoro exploratório ) e o concerto de arromba de La Jungle que pôs toda a gente a saltar ao som dos seus ritmos endiabrados. Os dois músicos desdobraram-se de tal forma que contagiaram toda a gente.

Mercado Santana | Fotografia de Idalécio Francisco/CCA

Mercado de Santana
No domingo, último dia, as condições meteorológicas não estiveram favoráveis e as actividades, que normalmente acontecem no Parque do Avião, tiveram de ser transferidas para o Mercado de Santana. Não tivemos o rio ao lado mas tivemos toda a emoção característica deste final de festa. Houve o piquenique maravilha, os jogos tradicionais do Hélder, vários workshops e houve festa, alegria ao som de Jhon Douglas & Jungleboys. “A música é uma ferramenta, assim como a pintura, os vídeos que faço, ou o skate, o que importa é a mensagem, é o que sou, e esse desejo de ecoar alguma mensagem, de mostrar o que eu sou e de onde eu vim se misturam com esse lado amazónico e isso reflecte em tudo o que eu faço e canto”, diz o Jhon Douglas. Parece-nos que A Porta não poderia ter fechado de melhor forma.

Gui Garrido | Fotografia de Idalécio Francisco/CCA

Neste dia chuvoso de Junho acabou o Festival. Fechámos a Porta. No entanto todas as mil e uma portas que abrimos ao longo destes dez dias permanecem em nós, fechadas a sete chaves num lugar caloroso da nossa memória. O Gui Garrido, Director Artístico, e a sua equipa fantástica de “Meia Dúzia de Gatos Pingados” são mais do que “facilitadores de sonhos” são potenciais criadores de mundos melhores. Que assim continuem.

Texto de Ana Moreira

 

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