O fim do ano

por Martinho Lucas Pires,    13 Dezembro, 2024
O fim do ano

Vejo, numa parede em Lisboa, a inscrição “Free Palestine”. Reparo que foi acrescentada em baixo, com outra tinta e caligrafia, a inscrição “from Hamas”. Reparo ainda numa terceira inscrição, adicionada no seguimento da segunda por outra mão, com outra tinta, que diz “and the papas”. Em três linhas temos a revolução, a reação e o meme. Bem-vindos a 2024, o ano que está a terminar.

Na realidade, as primeiras boas-vindas ao ano findado foram dadas por Úria, Samuel. Declarando-o hostil, pede-nos um salto para o futuro, que não é o mais do que um outro passado, talvez mais sorridente do que o que tivemos, mas não menos real nem possível. É o melhor disco do menino de ouro de Tondela desde “O Grande Medo do Pequeno Mundo”, e acompanhou as torradas da manhã de sábado com gosto, e alguma dose de nostalgia por um tempo em que ouvia as canções de Diego Armés, ora com os Feromona ora com os Chibazqui. A canção “Diogo”, por exemplo, momento maior do disco “Planos para o Futuro” (o final do ano e o futuro, can you dig it?), arranca logo a abrir: “Estou farto de ser Diego / quero ter um alter-ego / agora quero cantar / que os rios nascem no mar”. Uma beleza.

Entretanto, a temperatura baixou na cidade e aqueceu no mundo. Caiu um governo em França e um regime na Síria, abrindo potencialidades difusas para o ano que vem. Crise na União Europeia, redefinições no Médio Oriente, e uma nova presidência Trump na América: como lidar? Gostaria de visitar a renovada Notre Dame e de ir passear a Manhattan, mesmo com assassinos sorridentes de gorro e mochila fotográfica à solta. Mas sei que vou continuar a passear por Lisboa, entre ruas visitadas e por revisitar, preso nos meus próprios 2000, um presente que se quer mais futuro e menos antigo. Escreverei as minhas inscrições na parede – por exemplo: Laura Palmer vive!, ou então, noutro exemplo: o medo que se lixe!

Soares era fixe, era sim senhor – tomara termos alguém com metade da sua aura e do seu desejo. Mas o facto é que não temos, e os factos são difíceis de contornar. Mete pena o que se vê na Assembleia da República, e chamar pouco entusiasmante à lista de putativos candidatos presidenciais é em si mesmo um elogio, de tão baixo que o nível está. Queria um país, e tenho um, de facto: adorável e desprezível em igual quantidade, incapaz e ternurento em doses colossais. Sei que por aqui estará, e continuará, mesmo com o fogo em Gaza e uma nova força em Damasco, com uma União sob pressão e uma América em modo de erupção.

E eu? Sou o primeiro lisboeta lá de casa, o que me deixa sempre desconfortável. Sei que há tanto que é melhor do que isto, a começar pelo resto do país, e ao mesmo tempo sei que isto é o melhor que pode haver, porque, bem, Lisboa. Há poucos prazeres maiores do que um dia de sol pela calçada da Estefânia, ou do que um cruzamento noturno pela Avenida da Liberdade, pejada de luzes e ainda assim escura, sóbria, amiga. O espaço ideal para voltar ao meu mundo secreto, que não é mais do que o meu pathos perpétuo, entre cidadão e estrangeiro, entre animador e melancólico, entre cronista e profissional, pelos séculos dos séculos.

Uma última coisa, não sobre Lisboa, ou o Médio Oriente, muito menos Bruxelas – apesar de estar perto. Falo de Antuérpia, ou melhor, dos comboios que partem para a Antuérpia, título de um dos melhores segmentos de uma das maiores (se não mesmo a maior) obra de prosa da literatura portuguesa: “Os Passos em Volta”, e onde se lê “que o mar dá uma qualidade especial à fantasia, ao desejo e à confiança.” Aqui estivemos este ano, junto ao mar, neste país de sol onde os rios nascem. Aqui continuaremos, para o ano, atentos e lutadores, considerando o milagre e o terror que cada dia propõe com o amor devido. Boas festas para todos.

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