O fotógrafo dos famosos
“Se não és muito bom no que fazes, faz o melhor que puderes.” Esse, era o letreiro que se lia por cima da entrada do estúdio de fotografia. Sempre que entrava no estúdio lá estava a frase da assombração. Emílio Valente nunca tinha sido bom a nada, e isso assombrava-o. Dizia que não, mas não era verdade. Sempre quisera ser alguém e até sonhava com isso todos os dias. Ao deitar, era assim que começava, Qual é o segredo do seu sucesso, Emílio? E assim se fazia adormecer, entrevistado por um jornalista famoso num canal de televisão. Não é que fosse inútil, mas não se lhe conhecia nenhum talento especial, apenas os talentos de uma pessoa comum. Tinha tirado a carta de condução à primeira, ganhava o suficiente para pagar as contas e, num qualquer grupo, sabia fazer rir os outros com uma piada bem tirada. Era realizado? Não e Sim. Preferia alterar a ordem para responder à pergunta, nisso era sempre do contra. Não, porque nunca estamos realizados, apenas em realização e Sim porque estou satisfeito com aquilo que sou. Mas não estava.
Tinha decidido manter o estúdio de fotografia de um tio que tinha fugido para o Brasil com uma amante. Ninguémfalava disso, nem mencionava o nome do homem, porque a mulher dele continuava por ali e a viver na mesma rua com as duas crianças que por cá ficaram. Ninguém ousava entrar ou mudar o negócio, e Emílio viu nisso a oportunidade certa para si, A Tia pode assim ganhar um rendimento. Eu reabro o estúdio e pago-lhe o aluguer. A loja não tinha custos e assim a Tia, que tinha ficado com uma mão atrás e outra à frente (lá está o ser do contra) podia ganhar com a ideia de Emílio. O Estúdio Valente estava de volta ao serviço e o negócio começou logo a florescer, tal era a necessidade de fotos tipo-passe, fotos de recém-nascidos, crianças em idade escolar e registo de casamentos e baptizados. Emílio aprendeu rápido que, apesar de não ser um grande fotógrafo, fotografava o que as gentes da terra esperavam dele: sorrisos e mais sorrisos. Emílio não sabia que a moda dos sorrisos nas fotografias era coisa recente naquele mundo, mas, se funcionava, para quê questionar? Havia muitas maneiras de os fazer sorrir, o Olhó Passarinho, o Olhó Boneco ou o mais comum, Sorria!
Mas nada tinha preparado Emílio para o que lhe estava prestes a acontecer. O desafio era inesperado e entrou-lhe loja adentro, com a certeza de ser aceite. E Emílio aceitou-o logo. Ali, na sua terra uma das pessoas mais famosas do país ia casar-se e queria o Estúdio Valente na festa, não como convidado, claro, mas como fotógrafo oficial. A senhora praticamente nem idade tinha para ser mais que menina, mas ainda assim impôs a sua vontade, horário e orçamento. Era essa a sua função, organizar casamentos. E fechar acordos era com ela. Emílio foi acenando com a cabeça, como lhe tinham ensinado vezes sem conta, que se devia fazer com pessoas mais importantes do que ele. E estas pessoas eram claramente mais importantes do que ele.
Acordou com o despertador e com a mensagem da Organizadora do casamento. Com poucos segundos de diferença, ambas diziam-lhe o mesmo, Tenho de ir. E foi e chegou com todo o material combinado e com toda a roupa vestida e, ali, na entrada da quinta, esperou que convidados fossem chegando. Tudo aconteceria ali, naquele espaço, e Emílio estava na entrada de todos os acontecimentos. Para acontecer tinham de passar por ele que, um a um, ou a pares e trios, lhes ia tirando as medidas (como se diz na gíria) para ir sacando imagens estáticas de pessoas demasiado bem vestidas. Pouco a pouco, todos estavam dentro do recinto e só faltava a noiva. Emílio viu-a chegar ao longe. Talvez pela forma como o sol lhe batia na cabeça, há mais de três horas, ou apenas por se ter ligado uma qualquer célula adormecida, a ideia ocupou-lhe todos os pensamentos de forma inesperada e inevitável. Este, era o seu momento para ser famoso.
De um carro de alta cilindrada, alguém abriu a porta à noiva personalidade famosa e apontou-lhe o percurso com cobertura vermelha, até ao local onde Emílio esperava. Ela, fresca, com aromas do melhor que o dinheiro pode comprar, e ele suado, desabotoado, e com as calças a caírem-lhe da linha do rabo. O par mais improvável do mundo, para fazer uma notícia tornar-se viral, estava prestes a casar a ideia com o acto. Ela avançava com a confiança que os sapatos lhe permitiam, convicta de estar a realizar o sonho de uma vida e sem saber que seria ela a realizadora e não a actriz do mesmo.
Emílio, esperou que chegasse até ele e, sem explicação, justificação ou vontade explicitada, lançou-se, de impulso,ao pescoço da rapariga que corria agora o risco de, antes de casar, viuvar o noivo que esperava por ela, lá dentro. Era famosa há demasiado tempo para ter medo que algo assim lhe acontecesse e já com metade do esófago esmagado contra a traqueia, ainda sorria, na esperança de que aquilo não lhe pudesse estar a acontecer, mas estava. A sentir os flashes na sua cara, e eram muitos, e de vários aparelhos electrónicos, Emílio sentiu, pela primeira vez, que era o protagonista. Um protagonista nada diplomático ou lógico, mas um protagonista inesperado e inesquecível. Ninguém nunca se poderia esquecer dele, a partir daquele momento. Pareceram horas, nesta sensação, mas na realidade, foram apenas segundos, até acontecer o choque do candelabro de bronze com a sua têmpora esquerda que, morto instantaneamente, caiu no chão, por cima da noiva, que agonizava com o seu próprio problema. Faltava-lhe o ar, mas foi ainda consciente que teve o ataque epiléptico que realmente a condenou. No devaneio interior da polpa sanguínea das córneas, de Emílio, a última imagem editada foi a do azulejo por cima da máquina de café lá do bairro: Antes feito do que perfeito.