O golfinho mau
Esta crónica não é sobre golfinhos, mas também é. O golfinho mau não é o equivalente à ovelha negra (ou ronhosa), que apenas se recusa a alinhar no rebanho; o golfinho mau é perigoso e representa a desilusão na forma de um animal fofinho. Há dias li um artigo na BBC News (Brasil) dedicado ao lado obscuro dos golfinhos. O artigo é de 2016, mas, e como tantas vezes acontece neste não-lugar chamado internet, fui lá parar sem saber como. “Desagradáveis e ardilosos: o lado obscuro dos golfinhos.”. Segundo o artigo, os cetáceos também têm um lado tenebroso, marcado por assédio sexual, incesto e infanticídio. A sério? Fiquei chocada. Afinal nem nos golfinhos se pode confiar. Há umas semanas li uma crónica do Valério Romão, aqui na Comunidade Cultura e Arte, onde falava também de golfinhos e de como tinham passado de moda nos últimos anos. Mas no caso do golfinho mau, a questão não é a de votar os golfinhos ao esquecimento infantil de quem já brincou o suficiente com um brinquedo e se cansou, mas descobrir no dito brinquedo uma potencialidade letal. Como se, de repente, um peluche se transformasse numa serra eléctrica e desatasse a ceifar os troncos do quintal e dos membros da família, nas mãos da criança atónita que o segura.
Já todos descobrimos e nos deparámos com golfinhos maus. No nosso bairro, no nosso trabalho e, eventualmente, nas águas tranquilas da nossa casa. O golfinho mau parece fofo ao longe, um golfinho como os outros, mas quando se aproxima, quando chega demasiado perto, é capaz de nos estraçalhar. Debaixo da aparência de golfinho está um tubarão, pronto a dar-nos o tratamento do seu petisco favorito. Muitas vezes até é um duplo engano: nós vemo-lo como um golfinho e ele vê-nos como uma tartaruga. É que os tubarões costumam atacar surfistas confundindo-os com tartarugas; mordem e arrancam as pernas às pessoas, mas não as comem. Acabam por se afastar depois do ataque com um: “Desculpa, enganei-me. Detesto o sabor das pernas humanas. Pensei que eras uma tartaruga, pá.”
Não sabemos se o golfinho mau é apenas mau ou se, à semelhança do humano, sofre de uma psicopatia grave que o faz não ter empatia por outros seres; um louco, portanto. (Esta questão é uma mera provocação, uma tentativa de analogia óbvia aos humanos, claro, bem sei que se tratam de animais selvagens reduzidos ao seu instinto.) Uma das partes que mais me chocou foi quando o dito artigo se referiu ao infanticídio: “Os biólogos suspeitam que o que parece uma brincadeira [dos golfinhos] pode ser também uma forma dos machos adultos tentarem matar filhotes para que as mães voltem a ficar no cio.” O golfinho mau atira os filhotes ao ar para os ferir mortalmente, e voltar assim a ter a fêmea disponível para si. Neste sentido, também acontece termos golfinhos bípedes, que até são destaque nalguns noticiários de gosto duvidoso. Felizmente, não costumam lançar os filhotes ao ar para os eliminar, e optam por ir procurar outra fêmea com cio, deixando a família desprotegida de outros males, mas, atenção, não deixam de ser golfinhos maus com aspecto fofinho de pai e de marido.
Acredito que a descoberta do golfinho mau acaba por nos acontecer a todos. É que eles andam aí. Na praia, na piscina, no restaurante à luz das velas ou na nossa própria cama. Fazem habilidades charmosas, são cheios de graça e deixam-nos desprotegidos, porque estamos a ver um golfinho mas é outro bicho que está debaixo daquela pele de golfinho. Ou então servem para reconhecermos que nem tudo é o que parece, que os estereótipos não existem e que até os golfinhos, que sempre considerámos amigáveis, esperam afinal o momento certo para nos afinfar o dente.