O herói esquecido de ‘Game of Thrones’
O visionário Bran Stark considerava-o o mais hábil cavaleiro vivo nos sete reinos. O último herdeiro de Arthur Dayne ou Gerold Hightower, membros da derradeira linhagem de valentia e cavalheirismo dos sete reinos. A ilustre genealogia foi decepada com a mais vil afronta ao trono de ferro, quando o último guerreiro audaz da Guarda do Rei foi arrancado do seu comando.
A lenda e a verdade histórica confundem-se quando o tema é Ser Barristan Selmy. É um dado adquirido que foi expulso da guarda real, mas a informação de que Joffrey o expulsou por estar “roxo de inveja”, deve ser interpretada como conjectura. Verdade confirmada é a ascendência incestuosa do jovem rei, provada por um longo processo de exumação. Hoje sabemos que a biologia consanguínea lhe toldava as faculdades e precipitava períodos de ventosidade. Pensa-se que esses factores combinados, o predispuseram para aceder aos pedidos de sua mãe e acatar os conselhos de Varys, o eunuco. Os três quiseram e a obra fez-se. Ser Barristan foi expulso. Sandor Clegane, o cão, tomou o seu lugar.
Foram centenas os nobres e populares que presenciaram o momento histórico da sua partida. Dezenas de testemunhos foram registados. Em tudo variam, desde a indumentária do nosso herói, ao relato dos trovadores. Variam em tudo, excepto numa única frase, que marcava a despedida do herói esquecido, do jet sete de Westeros:
“Even now, I could cut through the five of you as easy as a dagger cuts cheese.”
Canções mais arrojadas – ausentes dos manuscritos oficiais – dão conta de parcerias improváveis entre Barristan e reis europeus, cavalgando lado a lado contra forças do sul. Histórias de um rei que ainda não era português, mas que o seria com o auxílio do escudo e da espada de Barristan, o arrojado, que os emprestava a uma causa tão justa quanto familiar: a de um rei a escapulir-se da sombra das saias maternas.
Infelizmente, à história de Barristan Selmy continuam a faltar as derradeiras páginas. De entre os mais respeitados investigadores da Idade dos Heróis ou da dinastia Targaryen, o principal escriba teima em preencher essas páginas vazias com um silêncio ensurdecedor. George R.R. Martin, o tal respeitado historiador, especialmente versado na Idade do Gelo e do Fogo – inato utilizador de suspensórios – , adia sucessivamente a publicação de um novo tomo que expanda sobre o final de vida do valente guerreiro, desmentindo adaptações televisivas menores.
Com os séculos que passam, as certezas perdem-se na bruma da lenda. É com textos fragmentados e relatos orais que se pinta o retrato de Barristan Selmy, o arquétipo perfeito de um cavaleiro. As suas qualidades eram indispensáveis para uma vida longa e próspera em Westeros. “Respeitado, habilidoso, valente, honroso e verdadeiro”, era assim que os Starks o descreviam nas suas reuniões anuais.
Infelizmente, o crepúsculo da vida de Ser Barristan foi marcado por traição, mentira e intriga, marcas do final da dinastia dos dragões. Só a sua lealdade e honra contrariavam o movimento em crescendo da extrema direita em Westeros. Numa carta dirigida ao usurpador, Eddard Stark falava de Barristan e da sua honra de cavaleiro como, e citamos, “de perder a cabeça.”
Mas no melhor pano cai a mancha. Ilyrio Mopatis, um espadachim mencionado em correspondência avulsa, foi mais incisivo ao afirmar que “Ser Barristan é um cavaleiro valente e verdadeiro, mas acredito que ninguém alguma vez o tenha chamado de astuto.”
O que Mopatis não compreendia, é que a astúcia não definiu o legado de Ser Barristan. Foi sim a honra que o compeliu a servir Jeffrey Baratheon, até lhe ser granjeada a reforma antecipada, em regime de meia pensão. À honra juntou-se a bravura, quando trocou as tardes plácidas de Kingslanding pelo agridoce odor de suor equino dos Dothraki. Juntou-se a Daenerys Targaryen e à sua guarda real, num movimento político louvavelmente progressivo para 300 a.C.. Susan Sontag e Beauvoir descreveram esta Mereen como “o berço do proto-feminismo”.
O período em que defendeu Daenerys pelas cidades livres é escasso em relatos. Alguns documentos apontam para a sua liderança dos Unsullied, quando a rainha atravessou o mar dos Dothraki rumo a Westeros. Um rumor infundado descreve a sua morte num beco escuro, pelas mãos de meia dúzia de zé-ninguéns. Esta última teoria foi propagada pelos escritores de Game of Thrones uma série documental de 50 horas, produzida pela HBO. Os escritores da série são conhecidos por tomar demasiadas liberdades com a verdade histórica, ao mesmo tempo que ignoram importantes figuras em prol de figuras menores, com bustos maiores.
A verdade é que ainda estamos à espera da versão definitiva que, em 2017, só pode sair da pena de George R.R. Martin. Neste momento, só é possível especular, mas certamente que os textos em falta não descreverão a morte de um espadachim lendário, de habilidade inigualada por quem teve a sorte de clamar contemporaneidade, e inigualável por quem foi incapaz de suceder-lhe, às mãos de mendigos mal-armados. As últimas páginas do herói que matou Maelys e derrotou Lormelle Long Lance ou Cedrik Storm, dificilmente contariam do seu fim precoce às mãos de escumalha. O fim da canção épica de Ser Barristan seguramente não foi escrito com as lâminas enferrujadas de ratos de esgoto, nos becos de escuro de um cidade, que de acordo com a história arquitectural da baía dos Dragões, nem saneamento teria.
Liberdades artísticas são de louvar, mas a verdade histórica é a verdade histórica e factos não são brinquedos. São muitos os que pretendem reescrever a história mas, felizmente para quem tem apreço pela verdade, há quem não se esqueça do carácter que inspira réis e heróis por vir. O contributo do verdadeiro herói de Game of Thrones não será apagado por linhas que faltam escrever.
É neste passado que buscamos inspiração para o futuro que nos espera. Chegando ao fim deste relato, entra pela janela o som de crianças a brincar na rua, um tilintar paus e canos avulsos, e gritos com pulmões sãos: “Mesmo com esta idade, ainda te cortava a ti, ao Pedrinho, ao Filipe, ao Ricardo e ao Pedro como se fossem queijo”. Perdoai-lhes o erro de concordância, como Barristan perdoou a Joffrey, porque é nestas ruas que se fazem os guerreiros de amanhã. Nas ruas que fizeram o Barristan de ontem.
Texto escrito a duas penas por Luís Azevedo e M.J. Cruz, autor de crónicas, contos, poesia e do romance de ficção científica “Karl Rogers“. Actualmente escreve no blog “Ósume Pósum”.