O inferno são os outros
Se estar confinado sozinho é mau, acompanhado, pelos vistos, não é melhor. Ao que parece, os pedidos de informação preliminar sobre divórcio subiram em Portugal, embora o fenómeno tenha começado na China, onde foi registado um grande aumento de pedidos de divórcio nas últimas semanas.
Não é nada de novo; sabe-se que o excesso de proximidade, a partilha constante de rotinas, acrescentando o cenário desconhecido e temível fora de casa, trazem desgaste aos próprios e consequentemente tensão às relações amorosas. Quem é que se quer deparar de 5 em 5 minutos com o companheiro/a em qualquer divisão da casa? É perfeitamente natural que as idiossincrasias do outro, que antes pareciam tão fofas (por exemplo, aquele barulhinho engraçado que o amor da vida faz desde o início da relação, quando coça a garganta por dentro), se revelem os mais detestáveis sons do demónio a atiçar as labaredas do inferno dentro da nossa cabeça.
Para os casais com filhos, o cenário de confinamento não parece mais animador: deixam de ter qualquer espécie de descanso. Bem tentam, em vão, dar conta do recado. Basta pensar no esforço que fazem durante as horas de teletrabalho, ao tentar manter um olho no computador e outro nos dois ou mais filhos que não conseguem sossegar mais de 15 minutos. É claro que ao fim de umas horas, os pais não têm outra hipótese se não deixá-los como selvagens à solta pelo apartamento de 60m² (com sorte, com uma varanda ou uma marquise, que têm de interditar, não vá dar aos pequenos ideias de pára-quedistas durante uma call com o chefe).
Quando os miúdos finalmente adormecem, depois de terem virado do avesso a sala, o quarto, e as casas de banho, e de terem berrado durante horas por frustração de terem ali os pais todo o dia sem receberem nenhuma atenção, os casais só pensam em dormir ou tentar alienar-se ao máximo da realidade e do outro através de algum programa de junk tv, ou em aquecer os olhos no micro-ondas das redes sociais.
Viver com alguém em tempos ditos normais já é bastante difícil; imagine-se agora ter de partilhar na íntegra todas as horas do dia. Obviamente não há desejo nem paz que resista. A casa torna-se uma jaula onde os humanos ganham a noção de que são animais que se atacam e que, apesar da vida em comunidade poder ser boa, todos precisam de um espaço só seu.
Penso que a frase “o inferno são os outros”, récita de uma personagem da peça de teatro Huis clos (em português: Entre Quatro Paredes), de Jean-Paul Sartre, escrita em 1945, é bastante apropriada para os tempos que estamos a viver. No texto de Sartre, duas mulheres e um homem encontram-se no inferno, condenados a permanecer para sempre juntos, entre quatro paredes. Ao aprisioná-las no inferno, Sartre faz com que cada uma das figuras aja como carrasco das outras duas. A célebre expressão quer mostrar também que o outro (o carrasco que habita connosco), na verdade, é fundamental para o conhecimento de si próprio, mesmo que as descobertas que vamos fazendo neste período não sejam animadoras.
Crónica de Cláudia Lucas Chéu
Escritora, poeta e dramaturga. Escreve contos semanalmente para o Jornal Público. Colaborou com as revistas Vogue, Elle, NIT, Gerador, entre outras. Tem publicados os textos para cena Poltrona – monólogo para uma mulher; Glória ou como Penélope Morreu de Tédio, pelas edições Bicho-do-Mato/ Teatro Nacional D. Maria II; A Cabeça Muda, pela Cama de Gato Edições; Veneno (Coleção Curtas da Nova Dramaturgia – Memória), Edições Guilhotina, 2015. Em prosa poética, publicou o livro Nojo, (não) edições. E em poesia, o livro Trespasse, Edições Guilhotina, 2014 e Pornographia, Editora Labirinto, 2016. Em 2017, foi publicado o seu livro Ratazanas (poesia), pela Selo Demónio Negro, em São Paulo (Brasil). Publicou, em 2018, o seu primeiro romance Aqueles Que Vão Morrer, Editora Labirinto, e Beber Pela Garrafa (poesia), pela Companhia das Ilhas. Acaba de lançar os livros A Mulher-Bala e outros contos, Editora Labirinto (2019); Confissão (poesia), Companhia das Ilhas, 2020.