O interior da questão
Não afies as tuas unhas snobes, amigo urbano, contra os votantes do interior.
Não as afies contra os teus concidadãos, caso contrário estarás apenas a usá-las para cavar a tua própria cova. A história recente tornou evidente que a farsa do discurso populista entrou nas vidas contemporâneas, mas também nos tem mostrado como este não deve ser combatido.
Atrevo-me a dizer que o interior, em medidas diferentes, não tem beneficiado do tal desenvolvimento que todos apregoamos. Espezinhado no Estado Novo e desprezado na democracia. Por vezes, a dor é mais reconfortante do que a liberdade do não-quero-saber. Do não-quero-saber das invasões da grande indústria agrícola, destes novos latifundiários internacionais que nem trabalho dão aos locais. Grandes estruturas que destroem o património e “importam” remessas de pessoas de paragens longínquas, para serem escravizados nesse interior de Portugal. Remessas de pessoas sem qualquer acolhimento digno e sem um projeto que as inclua na paisagem. Falamos dos anos 70 e dos bairros sociais de Lisboa, com a sabedoria do tempo, mas não queremos saber do que está a passar-se hoje em grande parte do país rural.
É certo que é muito difícil fazer uma análise quando temos uma abstenção gigante. Fora os que se protegeram da pandemia, o que pensam os que se abstêm? Será que são sempre os mesmos ou esta massa inerte não é assim tão estanque? Será que a diversidade das propostas não terá arrancado à unha aqueles que antes não se sentiam representados? Será que a abstenção é apenas um eco no professor Marcelo: “está ganho, nem vale a pena?” Será que a abstenção não é um grito mudo do descontentamento, da falta de justiça e dos salários miseráveis? Talvez isto explique que o partido comunista tenha mantido a votação no Alentejo e que, mesmo assim, o Chega tenha crescido como nunca. Não acredito na flutuação dos votos (entre opostos), mas no buraco negro e misterioso que é a abstenção. Esta massa gigante que poderá ter voz amanhã.
A sociedade contemporânea acredita na reconversão. Por isso, “somos” contra a pena de morte, a prisão perpétua e as mutilações. Contudo, o que eu mais vejo, todos os dias, são os meus amigos a negarem diálogo com quem pensa diferente. A desamigar o outro e, com isso, a criar tribos. A diversidade que nós achamos que a nossa vida compreende é muito reduzida. Vista a uns metros de distância somos todos iguais. Contudo, as redes sociais, dentro da malha dos algoritmos, ainda nos vão conferindo um contacto com o diferente. Esse contacto é a oportunidade que temos para conseguir mostrar o outro lado do cubo. Mas como é que as pessoas que se consideram mais sensatas são as primeiras a desistir? “Não se discute com fascistas.” Se achas mesmo que a maioria das pessoas que votam no Ventura são fascistas é porque andas alienado e não estás a usar o teu lugar de privilegiado. Sim, não estás a usar o teu conhecimento para melhorar a vida de todos e criar entendimentos.
A cultura defende a empatia, o diálogo intercultural e uma série de princípios que nos tornaram melhores como colectivo. Contudo, a cultura não se faz apenas num palco. É na terra que a cultura deve ser exercida. Não tenho soluções claras. Contudo, sei que não é a hostilizar, a salgar a terra, a virar as costas, que vamos resolver o que quer que seja. Se não queremos um Brexit, um Trump, um Bolsonaro, um Orbán, temos de ser mais espertos do que os populistas e contrariar os algoritmos e oxigenar os whatsapps de vida. Por exemplo, aclamar pela demissão do Ventura é só fazer parte do folclore que ele próprio montou. Agora sim, coloca o batom e vai para a “rua”. Conversa com o outro com a curiosidade e com a necessidade vitais para o encontro. Sem encontro, o populismo ganha e todos perdemos. Uma vez que um país não se faz de tribos, nem de bairrismos.
Que a terra que nos enche as unhas seja do cultivo e não da criação de trincheiras.