O inverno do nosso (des)contentamento

por Cronista convidado,    23 Outubro, 2022
O inverno do nosso (des)contentamento
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Preparar o inverno afigura-se, desde o início da histórica democrática do país, uma das prioridades mais vezes expressas por todos os ministros que tutelaram a pasta da saúde. Permanece, porém, a sensação, ano após ano, espelhada nas perguntas dos jornalistas, e nos olhares de desaprovação da sociedade civil, de que os objetivos não se cumprem — e que o desafio derradeiro na saúde parece, afinal, inalcançável.

Os factos não podem ser desmentidos: a dotação orçamental para o setor tem sido consecutivamente maior nos últimos anos, e a percentagem do orçamento de estado canalizado para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) é consistentemente superior à média dos países da OCDE. Perante o exposto, urge perguntar se os recursos são suficientes. A resposta não é linear — se se fizer a comparação por despesas brutas em saúde, ressalvando-se as diferenças musculadas entre as economias da zona euro, percebe-se que Portugal cai vários lugares no ranking dos países mais despesistas — isto é, os que mais investem. Então, como explicar as carências, sentidas na gestão corrente das instituições que compõem o SNS?

A resposta, complexa, interseta a falta de recursos e o modo como estes têm sido geridos no terreno. A recente crise, sentida nos Serviços de Urgência de Obstetrícia, tornou-se o mais recente e paradigmático exemplo de um SNS deficitário, com fraturas ainda mais expostas no rescaldo de uma pandemia que ainda não terminou. É inquestionável que a resposta, multimodal, precisa de abraçar soluções conjeturais, sem que se descure, no médio-longo prazo, as soluções estruturais, que repensem a arquitetura do próprio sistema.

A esse nível, o novo-estatuto do SNS compromete-se com uma articulação necessária entre os diferentes graus de respostas exigidas. A criação da Direção-Executiva permitirá uma gestão operacional, contínua e diária, da partilha e distribuição de recursos financeiros, humanos e materiais, com otimização de uma prestação de cuidados integrada, em rede, que permita antecipar e suprir falhas no sistema, alocando eficientemente os recursos onde são mais necessários, e mantendo as populações informadas em consonância. Isto criará espaço para que o Ministério da Saúde se debruce na organização tática e estratégica do SNS, repensando as políticas públicas que devem redefinir o setor nos próximos anos: desde uma estratégia robusta de saúde mental, contra a crise demográfica e o envelhecimento, passando pela promoção de saúde ou a redefinição das carreiras e dos salários dos profissionais de saúde.

E, assim, talvez se abra caminho para um inverno de contentamento — e para os invernos que se irão seguir. Para evitar novas crises, o caminho de levantamento de restrições ao pagamento de horas extraordinárias de médicos de quadro, para harmonização com os prestadores de serviço, tem de ser continuado. Assim como as conversações com sindicatos acerca da revalorização de carreiras, em termos de progressão e compensação salarial. E não só: será importante repensar todos os outros atributos que diferenciam uma carreira no SNS e no setor privado: flexibilização do modelo de trabalho, melhoria de infraestruturas, incentivos à formação e à investigação.

Acima de tudo, será imprescindível que os decisores tenham uma atitude mais empática e de proximidade, ouvindo médicos, enfermeiros, técnicos administrativos e todos os outros profissionais — as suas queixas, e as respetivas soluções.

A visão de quem opera no terreno é insubstituível. E acaba por ser tão simples quanto poderoso: são os profissionais que compõe o SNS — e é a escutá-los que se encontra a derradeira forma de o salvar.

Crónica de João Marques.
O João é Médico de formação (FMUP), com especialização em Gestão e Administração de Serviços de Saúde (PBS). Profissionalmente, exerce funções de Life Sciences and Wellness Consultant numa das maiores consultoras a nível internacional. Como Health Consultant, tem desenvolvido a sua atividade, junto de stakeholders nacionais e internacionais, desde farmacêuticas, institutos de pesquisa e centros hospitalares.

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