“O Lugar”, de Annie Ernaux: a possibilidade de relações familiares marcadas pelo contraste geracional e divergência de valores

por José Moreira,    12 Outubro, 2022
“O Lugar”, de Annie Ernaux: a possibilidade de relações familiares marcadas pelo contraste geracional e divergência de valores
Capa de “O Lugar”, livro de Annie Ernaux (edição Fósforo / Brasil)
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Acredito que, tal como me aconteceu noutros anos, muita gente não conheça a galardoada com o Nobel da Literatura de 2022: Annie Ernaux. Nos últimos anos tem sido apanágio a escolha final recair sobre autores menos óbvios do que alguns dos eternos candidatos. O meu contacto com a autora ficou-se a dever a uma breve visita a uma livraria independente, há uns meses. “O Lugar” despertou-me o interesse e por coincidência vejo agora a autora ser distinguida com tão prestigiado prémio e reconhecimento. Para além da própria escassez de obras editadas em Portugal, “O Lugar” não será um livro de fácil acesso em português (é uma pequena edição da extinta Editorial Fragmentos). Com o reforçado interesse na autora e já existindo esta tradução, acredito que será eventualmente reeditado e que seria uma ótima introdução à sua obra.

“Em poucas horas, o rosto do meu pai tornou-se irreconhecível. Ao fim da tarde fiquei sozinha no quarto. O sol deslizava através das persianas sobre o linóleo. Já não era o meu pai.”

Annie Ernaux em “O Lugar”.

Em “O Lugar”, a autora francesa constrói a sua narrativa alicerçada em elementos autobiográficos e consta que este estilo diferenciador é transversal à sua obra. Apesar de se tratar de uma transposição quase directa da sua vida pessoal, neste caso com grande foco no seu pai, a autora monta uma narrativa que extrapola para além da simples narração factual e biográfica. Desta forma consegue “coser” a história e os sentimentos que deseja eternizar. Parece-me que, por vezes, trata as suas memórias como se fossem atribuídas a um narrador que não ela própria. Quase que recusa embelezar em demasiado a sua prosa e mantém uma certa crueza estética que nos aproxima deste mundo íntimo que nos descreve.

Annie Ernaux em 2011 / Fotografia de Lucas Destrem – Wikimedia Commons

Esta narrativa inicia-se então com a morte do pai, retrocedendo depois à infância da autora para o dar a conhecer melhor e à sua relação com Annie. É uma organização temporal bastante interessante e de leitura cativante, muito bem executada. Tal como mencionado anteriormente, esta história foca-se na relação entre pai e filha. Esta dinâmica possui características vincadas de consciência de classe e da mutação da mesma através da evolução geracional, própria do seu tempo. Remete para a cisão de valores entre uma geração de pais focada no trabalho árduo e a dos filhos já investidos numa maior educação académica e humanista, com outras preocupações para além da ocupação manual dos seus dias. 

“Conseguiram uma boa situação pouco a pouco, ligados à miséria e pouco acima. O crédito prendia as famílias operárias numerosas, os mais desfavorecidos.”

Annie Ernaux em “O Lugar”.

Pairava sempre no ar a ameaça de regressão de estatuto social, isto impactou imensamente o pai e a maneira como a educou: “Via limitada, ao escrever, entre a reabilitação de um modo de vida considerado interior e a denúncia da alienação que o acompanha. Porque esta maneira de viver era nossa, a própria felicidade, mas também as barreiras humilhantes da nossa condição (consciência de que «não estamos suficientemente bem»), gostaria de falar ao mesmo tempo da felicidade e da alienação.”, lê-se no livro de Annie Ernaux.

O pai conseguiu subir socialmente de uma família de camponeses para operário fabril, posteriormente ascendeu à classe média baixa com um negócio próprio de mercearia e café no seu bairro. Conseguiu assim proporcionar à jovem Annie a possibilidade de estudar, mesmo que o próprio não reconheça plenamente a utilidade de o fazer. Ernaux enaltece que: “Os estudos, para ele, não tinham relação com a vida de todos os dias.” Fica igualmente descrito o período transformativo em que a autora se forma e o seu início de carreira como professora. Destaco como esta não é apenas a história do pai ou da autora, é um relato humano, sensível e aterrador. Um pequeno turbilhão de emoções.

“Talvez o seu maior orgulho, ou mesmo justificação a da sua existência: que eu pertencesse ao mundo que o tinha desprezado.”

Annie Ernaux em “O Lugar”.

Esta é uma demonstração literária de como é possível existir um sentimento profundo em relações familiares marcadas pelo contraste geracional ou de divergência de valores. Aprofunda o pesar associado à perda e o expurgar do peso do luto de forma emocionante e surrealmente pragmática. Refletindo sobre esta amostra do seu trabalho, consigo agora compreender o critério para a sua distinção como Prémio Nobel, Annie Ernaux eleva o conceito de “livro de memórias” a um patamar que se bate com as melhores ficções e poesias.

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