O lugar do silêncio no cinema

por Miguel Rico,    19 Julho, 2022
O lugar do silêncio no cinema
O Espelho (1975), filme de Andrei Tarkovsky
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Nos anos vinte, ainda que tenha consistido numa transição difícil e demorosa, o aparecimento do cinema sonoro possibilitou novas abordagens de análise à estética cinematográfica. Os avanços nas tecnologias e técnicas de desenho de som viabilizaram um novo entendimento do cinema, que passou a convocar novos significados e a expressar ideias que até então não eram possíveis comunicar.

A sobreposição do som à imagem permitiu, ainda, compreender o lugar do silêncio nas narrativas do grande ecrã. De acordo com o cineasta Robert Bresson, com o aparecimento do som na sétima arte surgiu, concomitantemente, uma valorização do silêncio enquanto elemento diegético.

O “sonoro”

Em 1926, no período em ultrapassavam uma grave crise monetária, os estúdios Warner decidiram investir numa tecnologia sonora inovadora, o “vitafone”, numa tentativa final de resgatar as finanças da produtora. O aparelho sincronizava a imagem do projetor com o som de uma grafonola, no entanto, ainda que produzisse um efeito impressionante para a altura, a máquina apresentava graves lacunas de funcionamento e foi substituída por um sistema ótico que integrava imagem e som numa película comum.

O aparecimento do som na sétima-arte incitou bastantes altercações entre a comunidade artística de Hollywood. Muitas estrelas acreditavam que a integração do som no cinema era completamente escusada e não demoraria até ser descontinuada. O mítico ator Charlie Chaplin acreditava, inclusivamente, que o aparecimento do cinema falado viera aniquilar a beleza do cinema mudo. 

Na Rússia Soviética, os célebres cineastas Serguei Eisenstein, Vsevolod Pudovkin e Grigori Aleksandrov mostravam, igualmente, uma preocupação com o advento do fenómeno do som no meio cinematográfico, chegando a formular um documento de contestação ao mesmo em 1928. No manifesto, os autores explicavam que o cinema sonoro poderia tornar-se uma “arma de dois gumes”, utilizada apenas para satisfazer a curiosidade das audiências. De acordo com os realizadores soviéticos, os filmes sonoros tornar-se-iam um mero pretexto para que certas qualidades de meios como a literatura e o teatro invadissem o cinema e acreditavam, ainda, que a adição de som poderia destronar a índole artística do ofício da montagem, visto que privilegiaria os fragmentos do filme e não a reunião do todo. 

O ruído de contestação aos filmes falados chegou ao contexto português em 1931, ano de estreia do primeiro filme sonoro português, “A Severa”, de José Leitão de Barros, quando o teatro de revista cantou um hino de manifestação, na voz de Corina Freire, chamado “Teodoro não vás ao sonoro”.

Em oposição à reação dos críticos, atores e cineastas, as audiências responderam entusiasticamente ao aparecimento do “sonoro” e o público português não foi exceção. Após o sucesso da película de Leitão de Barros e na sequência de uma comissão fundada pelo Ministério do Interior, com o objetivo de dinamizar o cinema sonoro em Portugal, surge, em 1932, A Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros Tobis Klangfilm

No ano seguinte, a Tobis Portuguesa, como passou a ser popularmente designada, produziu a célebre comédia “A Canção de Lisboa” a partir dos estúdios de Epinay, em França. A produtora portuguesa, apoiada pela Comissão de Estudo do Cinema Português, despertou o interesse do regime e António Ferro rapidamente colocou em ordem uma série de encomendas que contribuíram para a sustentabilidade da empresa.

Regressando ao panorama internacional, a tríade de realizadores soviéticos (Eisenstein, Pudovkin e Aleksandrov) não tardou a observar as grandes vantagens da componente sonora como complemento à lógica de montagem fílmica. Os cineastas russos, agora convertidos, exploraram ao máximo as potencialidades deste novo elemento nos seus filmes, através de experiências com a produção de sentido e associação de imagens. 

Ainda que a maioria dos manuais de cinema atribua a estreia do cinema sonoro aos filmes de Alan Crosland, Don Juan (1926) e O Cantor de Jazz (1927), as primeiras experiências para sincronizar o áudio com a imagem do grande ecrã remontam ao tempo do fotógrafo pioneiro Eadweard Muybridge, ainda em 1888. Embora as investigações perdurassem durante anos, é pertinente considerar a forte oposição crítica ao cinema sonoro e a afirmação dos estúdios numa defesa sistemática do cinema mudo criaram anos de entropia ao desenvolvimento tecnológico das tecnologias do som na sétima arte, que, segundo o autor Marcel Martin, poderia ter-se tornado falada muito mais cedo.

O aparecimento da relação audiovisual levou à consequente descontinuidade dos cartões de legendas e permitiu um aprofundamento significativo da linguagem cinematográfica. O efeito de continuidade sonora, por exemplo, estabelecido através das bandas sonoras, permitiu uma nova experiência de continuidade narrativa, muito mais dramática e aliciante.

Som diegético e não-diegético

O aparecimento dos filmes sonoros ou talkies (filmes falados) concedeu uma credibilidade renovada ao meio cinematográfico, que passou a espelhar uma ilusão da realidade de forma mais verosímil. Os temas musicais e a autenticidade dos efeitos sonoros passaram a desempenhar um papel fulcral no desenvolvimento da prática narrativa e no envolvimento emocional dos espectadores.

Durante os anos 20, Jack Foley, que batizou a célebre técnica de sonorização em cinema, ainda hoje utlizada, juntou-se à Universal Studios para dar som aos musicais Melody of Love (1928) e Show Boat (1929). 

Inspirados pelas técnicas de sonoplastia dos broadcasts radiofónicos, Foley e a sua equipa começaram a produzir efeitos sonoros durante a projeção do filme e numa só pista de áudio. Era, por isso, imperativo que o trabalho de sincronização do áudio se encontrasse perfeitamente alinhado com o que era visto no ecrã.

As técnicas de Foley e os progressos nas tecnologias de som levaram a novas considerações teóricas no que concerne à adaptação do som no cinema e no audiovisual. Podemos distinguir, entre os sons que compõem uma obra cinematográfica, três categorias de som:

O som diegético, isto é, o som presente no universo fictício e que as personagens percecionam. Ainda que integre uma parte fundamental da mise en scène, estes sons não têm que ser necessariamente captados no local de filmagens, podendo ser gravados através da, já referida, técnica Foley e adicionados em pós-produção. Os diálogos e as falas são um dos exemplos que melhor ilustra esta categoria.

Som não-diegético, que não tem origem no universo fictício e com o qual as personagens estão impossibilitadas de interagir. Os efeitos sonoros não-diegéticos são frequentemente utilizados com uma intenção narrativa, para enaltecer determinadas emoções ou momentos. A banda sonora ou a “voz off” dos narradores são dois dos exemplos mais pertinentes deste tipo de som.

E, por último, o som meta-diegético, feito com o intuito de enaltecer os estados de espírito ou sentidos das personagens. O espectador compreende que este tipo de som é uma construção representativa do psicológico. Como a personagem se sente, mas não necessariamente o que a ouve. Por exemplo, um zumbido quando o protagonista bate com a cabeça.

A montagem fílmica é frequentemente caracterizada como uma “arte invisível”, um ofício que facilmente passa despercebido precisamente por aquilo a que se propõe alcançar, isto é, unidade e continuidade entre cenas. À semelhança da montagem, também o trabalho de Foley, mistura, desenho e edição de som se encontra, recorrentemente, subvalorizado. 

Ainda que nem todos os filmes procurem uma representação realista dos efeitos sonoros, a qualidade do desenho de som afeta, de forma substancial, a qualidade global de uma obra cinematográfica. O impacto de um murro, por exemplo, é tão enfatizado pela sonoridade como pela substância visual, algo que podemos observar se compararmos as célebres películas de ação de Bruce Lee com o visceral Fight Club (1999), de David Fincher, por exemplo.

Fidelidade vs. Inteligibilidade

A distinção entre som diegético, não-diegético e meta-diegético integra, ainda, dois conceitos particularmente relevantes, fidelidade e inteligibilidade. O professor e compositor James Lastra demonstra, num artigo intitulado “Fidelity versus intelligibility”, que enquanto uma abordagem “fiel” ao som pressupõe que a audiência deve ouvir o que vê, a perspetiva “inteligível” assume que o que o é ouvido pelo público deve convocar algum tipo de informação narrativa. Estas abordagens, conceptualmente diferentes, são recorridas em ocasiões e contextos distintos numa obra audiovisual. 

À semelhança da direção de fotografia, que procura convocar um “ponto de vista”, também a direção de som pretende captar, segundo o compositor Michael Chion, um “ponto de escuta”. 

O conceito de “ponto de escuta” propõe que a perceção de som das personagens deve coincidir com o ponto de vista do espectador. Não obstante, por uma questão de inteligibilidade, isto é, em prol da integridade narrativa, o ponto de escuta pode alterar-se para manter uma harmonia cinematográfica e evitar arruinar a mise em scène

Esta necessidade, de comprometer a “fidelidade” sonora em função da identidade narrativa e do entretenimento, surge frequentemente no cinema. A célebre saga Star Wars, exemplifica solenemente esta premissa, pois, ainda que a audiência compreenda que não existe propagação de som no vácuo do espaço, seria impensável assistir às batalhas entre naves sem ouvir disparos lazer ou explosões. 

Num outro exemplo, um pouco mais técnico-formal, ao alterar uma escala dos enquadramentos de um plano geral para um plano próximo, o som das falas não tem, necessariamente, que aumentar, mas pode fazê-lo se a relação espacial assim o implicar. Neste caso, o “ponto de escuta” está dependente do blocking (encenação, coreografia e relação de perspetiva estabelecida entra a câmara e as personagens) ou pelas intenções narrativas ou semióticas que os autores pretendem convocar. 

O “ponto de escuta” pode suceder, ainda, de forma subjetiva, através do som meta-diegético. Se uma personagem estiver num estado psicológico alterado, com alucinações, por exemplo, o “ponto de escuta” pode encontrar-se distorcido ou no caso de uma personagem com deficiência ao auditiva, ser abafado ou mesmo inexistente.

A valorização dramática do som em cinema permanecerá eternamente dependente da relação que cria com a imagem que, devido à sua propriedade realista, ocupa o primeiro plano na memória do espectador. No entanto, esta relação, ainda que desigual, encontra-se profundamente enraizada na prática cinematográfica. A imagem concede um motivo à audição, porém, o som, mesmo que subvalorizado, confere à imagem impacto e substância. 

O lugar do silêncio no cinema 

A acrescer à fidelidade do som diegético e à inteligibilidade do som não-diegético e meta-diegético, podemos mencionar um estado que engloba todos estes conceitos e, simultaneamente, nenhum, a ausência de som.

Robert Bresson, na sua obra “Notas do Cinematógrafo”, refere que o silêncio no cinema foi inventado com o aparecimento do “sonoro”. Embora pareça contraditório, o autor pretende frisar que com o aparecimento do som na sétima-arte surgiu, concomitantemente, uma valorização diegética do silêncio. A ausência de som tornou-se um agente narrativo que transmite algum tipo de significado e/ou frustra uma capacidade emocional.

Atualmente, os grandes blockbusters da indústria norte-americana explodem de sonoridade e podemos observar uma revalorização dramática da ausência de som. Em O Resgate do Soldado Ryan (1998), Spielberg serve-nos o silêncio em plena ação do Dia D numa prática meta-diegética que exalta a forma como John Miller (Tom Hanks), o protagonista, se sente perdido, prostrado e confuso ao desembarcar na costa da Normandia. Durante o silêncio, a componente visual é enaltecida e a audiência, completamente compenetrada nas imagens, é deixada em suspenso. Nesta sequência, a transição da ausência de som até ao rebentamento de elementos sonoros encarrega-se de acentuar o contraste entre o choque inicial do campo de batalha e a luta pela sobrevivência à medida que a personagem de Hanks se apercebe da realidade à sua volta.

Filmes como Raging Bull (1980) ou Silence (2016), de Martin Scorsese, destacam-se pela utilização deste quieto elemento. “Antes da tempestade vem a bonança” é a melhor descrição para os silêncios de Scorcese, que preparam o espectador para o impacto do som, antecipando a ação através da desconfiança. 

Numa das sequências finais de Raging Bull, um silêncio tenebroso associado ao dolly zoom que empurra a câmara até ao adversário do outro lado do ringue, enquanto afasta, simultaneamente, o plano de fundo, cria um efeito desorientador e premonitório da brutal sequência de luta que lhe sucede. 

Em Silence, Scorsese faz do silêncio o mote central da narrativa. A ausência de som surge no filme como uma prova da fé e da resiliência dos protagonistas. Nesta obra de Scorcese, o silêncio descreve o conflito intrínseco às motivações do padre Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e impõe-se enquanto interrogação. A premissa do filme, Sometimes silence is the deadliest sound, recorda a pertinência deste elemento que materializa uma incógnita a partir do nada. 

Em momentos de suspense, por exemplo, nos quais o assassino procura pela vítima, que se encontra escondida debaixo da cama, o espectador procura o silêncio, como se, ao fazer barulho, revelasse o esconderijo do protagonista. O mestre deste ofício, Alfred Hitchcock, poderia igualmente ser reconhecido por “mestre dos silêncios”. Em Os Pássaros (1963), Hitchcock recorre ao silêncio diegético para destabilizar a audiência e provocar uma sensação particularmente perturbadora no clímax da cena. Desta forma, a serenidade dos sustos do realizador britânico provocam uma aflição inigualável, especialmente no espectador contemporâneo, habituado a que a banda sonora lhe encaminhe, permanentemente, as emoções. 

Enquanto o “mestre do suspense” encontrou um mecanismo premonitório na ausência de som, cada autor procura, neste elemento, um sentido distinto para as suas obras. Os silêncios de Bergman chegam pela calada nas brisas inquietas de The Virgin Spring (1960) ou nos sussurros secretistas de Persona (1966). Já os murmúrios de Tarkovsky ecoam solidão pelas colinas de O Espelho (1975) e o perigo ou a melancolia pelos locais recônditos de Stalker (1979).

O estado de silêncio possibilita uma qualidade meditativa incomparável e pode constituir um sinónimo de solitude, ausência, mágoa ou perda. Ainda assim, o silêncio, quando associado às imagens do grande ecrã, pode ser vasto como a órbita do planeta terra no filme Gravidade (2013) ou compacto e claustrofóbico, como as celas do hospício de Shutter Island (2010). É uma propriedade mutável e inescapável, que estabelece contraste, enaltece o suspense e obriga, frequentemente, à meditação, ao ocupar o lugar metafórico da transcendência. Pode ser assolador, libertador e, muitas vezes, absolutamente indispensável.

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