“O Mandarim”: a obra (quase) esquecida de Eça de Queirós

por Eduarda Magalhães,    7 Abril, 2022
“O Mandarim”: a obra (quase) esquecida de Eça de Queirós
“O Mandarim”, livro de Eça de Queirós (edição de 1927)
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O Mandarim é um romance de Eça de Queirós muito diferente das restantes criações ficcionais do escritor. Talvez, por isso, seja das suas obras mais desprezadas pela História Literária. Não obstante, este pequeno romance foi objeto de estudo na minha tese de mestrado: “O Ethos na Retórica d’O Mandarim de Eça de Queirós: Imagens de si”. Nela me baseio para escrever este breve texto.

Segundo Beatriz Berrini, Eça pretendeu contrastar as obras tipicamente realistas com aquilo que ele próprio considerava fantasia (Berrini, 1993:15). Também me parece que este romance, por alguns considerado novela ou até conto, foi escrito de forma espontânea, de rajada num mês. Essa espontaneidade vê-se no facto do autor ter chegado ao texto definitivo com poucas alterações, algo muito raro em Eça, que não acontecia nas restantes obras: veja-se O Crime do Padre Amaro, por exemplo, que possui três versões. Eça de Queirós estava a escrever Os Maias, quando percebeu que o romance iria ser mais extenso do que o previsto para ser impresso em folhetim. Como a pressão, por parte do editor, começava a ser bastante inconveniente, Eça decidiu presenteá-lo com O Mandarim, a fim de o “entreter” e de o fazer esquecer, pelo menos por uns tempos, de que havia uma outra obra a ser entregue.

Ao contrário das obras consideradas realistas, narradas de forma omnisciente e heterodiégetica, O Mandarim está escrito na 1a pessoa, no contexto de uma ação na qual participa Teodoro, um peculiar narrador autodiegético. Para além disso, existe o abandono das estratégias de observação objetiva, algo bastante surpreendente, visto que Eça captava de forma direta e objetiva a sociedade oitocentista, para depois a refletir no papel. Eça, ao contrário do Egito, nunca conheceu a China, mas recriou-a a partir da recolha de informação em textos alheios, como As Atribulações de um chinês na China, de Júlio Verne.

Eça de Queirós em 1882 / Fotografia de Biblioteca Nacional de Portugal

Ainda partilhando as palavras de Beatriz Berrini, uma outra singularidade curiosa que a investigadora destaca é que O Mandarim “é a primeira obra ficcional queirosiana em que o génio galhofeiro do romancista se expande, após a experiência inicial jornalística alcançada com a publicação periódica d’As Farpas” (ibidem). Nesse aspeto, o romance A Relíquia é o único que se lhe compara, entre as obras publicadas em vida. Mas significa esse «génio galhofeiro» uma musa menor? Parece-me que não, desde logo porque possui uma temática bastante interessante: a questão ética da personagem, o seu ethos (caráter).

Eça de Queirós baseou-se no designado «Paradoxo do Mandarim», conhecido sob a forma de alegoria e de princípio moral e que tem como objetivo saber se o ser humano é capaz de se manter fiel à virtude, se tiver a certeza da impunidade do crime. De forma rápida e sucinta, esta controvérsia em torno da «morte do mandarim» já era explorada em França, durante o século XIX. E o imaginário do mandarim, do exótico e do oriental, penetrou também, nesta época, a inspiração dos autores portugueses, por exemplo O Almanach dos Estudantes para 1872 inclui o poema “Um chinês e uma andaluza”.

O «paradoxo» é mencionado, pela primeira vez, em Chateaubriand, no Génie du Christianisme (1802). Porém, é atribuído erradamente a Jean-Jacques Rousseau, embora Honoré de Balzac o cite como pioneiro do «Paradoxo do Mandarim» em Le Père Goriot (1834). E seria em Le Père Goriot (em português O Pai Goriot) de Balzac que Eça de Queirós se iria inspirar para criar O Mandarim. Não obstante, existem diferenças significativas. Balzac é mais “realista” do que Eça: nele estão ausentes as características fantasiosas ou exóticas (o morto é um habitante de Paris, e o plano diabólico é pisado por um homem). Mas os elementos básicos do «Paradoxo do Mandarim» estão presentes em ambas as obras: há uma vítima desconhecida; ela morre por vontade do protagonista e não pelas mãos dele; ele é cúmplice, não o verdadeiro assassino; e se a personagem assim o quiser, aceita a fortuna que lhe é concedida após a morte da vítima. N’O Mandarim de Eça de Queirós, estes elementos poderiam levar a outras interpretações. Porém, neste texto, irei centrar-me, muito brevemente, na multiplicidade dos vários carateres presentes numa narrativa tão curta, que vão do verosímil realista ao inverosímil fantástico.

À medida que se lê este pequeno romance, o leitor atento vai-se apercebendo que na centralidade do caráter não há uma visão unificada. Antes pelo contrário, o autor parece divertir-se (e divertirmo-nos) com um problema sério: a ambiguidade do ethos. Esta questão não pode ser vista como alheia ao projeto de um Eça antes d’Os Maias, nem nos podemos esquecer que ele escreveu O Mandarim ao mesmo tempo que escrevia Os Maias.

Teodoro, amanuense português, é a personagem principal desta obra, as restantes funcionam quase como figurantes, excetuando-se o Diabo, que serpenteia na ação como personagem secundária, sendo o grande influenciador do destino e da caracterização do protagonista.

A narrativa do romance desenvolve-se em torno de um problema de consciência, do tal «Paradoxo do Mandarim» já mencionado. Teodoro, convencido pelo Diabo, decide tocar numa campainha, que matará um velho mandarim, Ti-Chin-Fú, na China, e lhe concederá a herança por ele deixada. O crime irá perseguir o jovem amanuense, sob forma concreta e visível no espírito de Ti-Chin-Fú. Este fantasma não fala, nem age, apenas surge numa imagem espectral que não pode ser esquecida. O protagonista debate-se entre o sentimento de culpa e a desculpa dos seus atos ao longo da narrativa. Apesar de haver uma luta interior da consciência, Teodoro nem sempre revela maturidade ou uma moralidade isenta. Ele acaba por viver com a herança herdada por meio de um crime, não se desfazendo dela definitivamente. E é a ambiguidade interior de Teodoro que coloca o seu ethos (caráter) em causa.

A complexidade d’O Mandarim decorre de um sistema poliédrico de imagens construídas de um ethos plural: como nos vemos, como nos veem, como queremos ser vistos, como nos queremos ver, etc. Com efeito, o narrador e a personagem principal, sendo a mesma pessoa, possuem carateres distintos como consequência do conflito retórico e persuasivo. Por isso, o leitor é confrontado, na minha opinião, com duas versões do protagonista: Teodoro-narrador e Teodoro-Personagem.

Apesar de viver uma vida sossegada e pacífica, aparentemente conformada, Teodoro ambiciona ter mais do que aquilo que lhe é dado. Por isso, aceita realizar um crime do qual resulta a certeza da impunidade. E mesmo quando o fantasma do mandarim assassinado o “persegue”, e o leitor começa a acreditar que haverá uma mudança comportamental e de caráter, o protagonista acaba por vacilar.

O culpado aos olhos de Teodoro-Personagem seria essa figura bastante conhecida a nível popular, o Diabo. Esta personagem sobrenatural surge com o disfarce de um homem contemporâneo, um cavalheiro, portador de um ethos convincente, usando-o para conseguir iludir e persuadir Teodoro. Usufruindo da aparente septicidade do amanuense, o Diabo consegue, através de um discurso com certo (diria até bastante) valor retórico, levá-lo a aceitar a razoabilidade da morte do mandarim, provocada pelo toque de uma campainha; é uma morte distante do olhar e de um idoso doente, Teodoro (quase) estaria a fazer um favor ao pobre homem.

Já Teodoro-Narrador funciona como a consciência, uma espécie de “Grilo Falante”, de Teodoro-Personagem e, apesar de se apresentar logo no início do conto, ele só começa a ser desenvolvido a meio da vida atribulada da personagem principal.

O objetivo do narrador d’O Mandarim é contar a sua própria história, a imprudência e a impulsividade juvenil que lhe trouxeram severas consequências para o resto da sua vida. Ao narrar a situação rocambolesca em que se envolveu, Teodoro- Narrador, não só quer prevenir e educar o narratário, como procura uma absolvição para o crime que cometeu. O ethos do Narrador surge através da experiência.

Neste nível de leitura, podemos perceber que a metafísica, o conflito entre Céu e Inferno e entre Bem e Mal, estão presentes na construção dos carateres das personagens. Ao desenvolver estes pontos, a obra de Eça vai revelando o poder do mito.

Contudo, não se pode esquecer que devido ao momento sociopolítico da sociedade da segunda metade do século XIX, todas as obras de Eça de Queirós foram guiadas por um processo de persuasão de mudança de mentalidades do cidadão “português”:

“Em Portugal há só um homem – que é sempre o mesmo ou sob a forma de dândi, ou de padre, ou de amanuense, ou de capitão: é um homem indeciso, débil, sentimental, bondoso, palrador, deixa-te ir; sem mola de caráter ou de inteligência, que resista contra as circunstâncias. É o homem que eu pinto […] E é o português verdadeiro. É o português que tem feito este Portugal que vemos.” (Queirós, 1979: II, 1648)

Para percebermos melhor a crítica de Eça de Queirós à sociedade portuguesa da segunda metade do século XIX, teremos de nos debruçar nas suas obras. Mas relembrarmo-nos que nem todas são uniformemente “realistas”, algumas gostam de passear pelos caminhos do misticismo. Por isso, entre as obras dos anos 70 e Os Maias, surgem O Mandarim (1880) e A Relíquia (1987), que apesar das suas características tocarem o exótico e o sobrenatural e de se afastarem um pouco da estética realista, não deixam de denunciar os problemas político-sociais patentes em Portugal no século XIX.

N’O Mandarim, Eça, apesar de modificar a sua estética e de se apresentar mais eclético, não perde o hábito de denunciar a miséria (como diria João Medina) do país, através da dualidade de um amanuense hipócrita e dualista (apesar de ter uma certa ingenuidade), que parte de uma religião de aparências. Teodoro, tal como Fradique Mendes, rezam Paces Deorum Quaerere, para “apaziguar os Deuses” (Queirós, 1979: II, 1052) – para chegar a um falso Positivismo – o português que concilia o desejo científico com a pátria supersticiosa. É através da caracterização da sociedade portuguesa, do homem tipicamente português e das suas falhas, que o ethos das personagens deste romance se desenvolve e se desnuda aos olhos de quem o procura. Relembro que Eça denuncia, acusa e revela todas estas falhas através da ironia e do humor, armas retóricas bastante conhecidas do génio queirosiano.

Dito isto, poderemos nós dar um sentido alegórico a’O Mandarim? Com efeito, a história foi construída e narrada para expor um problema de consciência e alumiar uma verdade moral. Essa nota alegórica poderá também ser vista no «Prólogo», onde há uma situação de dupla autoria, apesar de haver um só Autor por detrás da obra, e se anuncia o propósito heterogéneo do conto para atrair o leitor: “Façamos fantasia!…”, propõe o primeiro amigo, “Mas sobriamente, camarada, parcamente!…E como nas sábias e amáveis Alegorias da Renascença, misturando-lhe sempre uma Moralidade discreta…”, responde o segundo amigo (Queirós, 1993: 79). Servindo-se do contexto fantasioso e alegórico, Eça afastar-se-ia das estéticas realista e naturalista, para dar azo ao sonho e à imaginação, ainda que de forma mais ou menos explícita.

O Mandarim não é uma obra menor de Eça de Queirós, tão pouco uma obra que deva ser ignorada pela História Literária ou pelo leitor do século XXI. Eça pergunta, neste romance, até que ponto adquirimos consciência enquanto seres humanos. Serás tu capaz de tocar a campainha e matar o mandarim? Mas penso que se destaca uma observação adicional: como é que a retórica literária pode contribuir para esta questão ética? Para Eça de Queirós, a resposta poderá estar na experiência do sofrimento. Teodoro, após tocar a campainha, experienciou sofrimento psicológico: começou a ser perseguido por um fantasma, a ser acompanhado pelo Diabo, foi expulso de uma aldeia chinesa e arrasado pela opinião pública quando quis voltar à vida humilde. Só com o sofrimento foi capaz de atingir a consciência. Mas quanta dessa consciência de Teodoro, imaginado por Eça de Queirós, pode ser percetível para o leitor? Deixo-vos, agora, essa missão.

Referências:

Berrini, Beatriz (1992). Introdução de O Mandarim. 1992. INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda; Queirós, Eça (1929). Cartas Inéditas de Fradique Mendes e Mais Páginas Esquecidas. Porto: Livraria Chardron, 1a edição in MACHADO, Álvaro Manuel. A Geração de 70 – Uma Revolução Cultural e Literária. Instituto de Cultura Portuguesa. 1977, 1.ª edição;
(1979). Obras de Eça de Queirós. I, II, III Volumes. Porto: Lello & Irmãos.
(1992). O Mandarim. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

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