O Marido sem Mulher

por Pedro Saavedra,    17 Novembro, 2021
O Marido sem Mulher
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Ela foi-se embora e, com a ambulância a descer a rua, Ele pôde respirar fundo. Estava ainda na exalação quando tocado no ombro começou a ouvir as questões que lhe mudariam o tronco nervoso para sempre. O polícia, sempre com um tom amistoso perguntava, uma após outra, questões cada vez mais existenciais da relação; Intimidades, comportamentos, memórias e sobretudo antagonismos. A receber as perguntas e a emitir as respostas, o homem foi ficando cada vez mais convencido de que realmente tinha um problema.

O Como é que isto aconteceu? Fazia uma reverberação metálica na sua cabeça. Ele próprio tinha dúvidas sobre o gesto inicial. Teria sido do olhar diagonal à mesa durante o pequeno-almoço? Teria sido do cheiro da casa de banho depois dela de lá sair? Teria sido dos papéis desarrumados em cima da mesa da cozinha? Eram tudo coisas que ele conhecia da sua convivência passada com Ela. Não poderia ser de nada do que fosse normal e expectável. Havia anos de hábitos a protegerem o gesto agressor.Teria de existir um gatilho, algo que ainda fumegasse da raiva da contenda. Algo que realmente o fizesse explodir. O polícia continuava a perguntar e Ele continuava a responder, mas já estava ausente da acção quando a memória finalmente se ligou.

A lama! Tinha sido da lama dos sapatos. A estúpida lama dos sapatos que ela tinha usado para ir ao jardim buscar uma daquelas ervas que adorava ferver com água. Chá! Isso não é chá! É água com sabor a erva e tu só bebes isso porque tens a mania que nunca vais ser velha! A frase cuspiu-a à frente do polícia que à sua frente parou na dúvida do que tinha acabado de acontecer. O senhor está bem? Sim, estou. Preciso só de descansar, foi um dia difícil. Compreendo, mas para o senhor poder descansar eu tenho de terminar o meu relatório. Posso continuar? Claro. E continuou nas perguntas de merda do costume e eu lá me consegui concentrar o suficiente para voltar atrás no tempo e vê-la à minha frente com aqueles sapatos imundos.

Estás a olhar para o quê? Esta casa é minha e eu uso os sapatos que quiser dentro da minha casa. Sempre o fiz e não vai ser agora que vais mudar isso! Aliás, lembro-me do teu elogio ao meu amor pela natureza, aos nossos passeios no bosque, às nossas férias na montanha. Lembras-te disso? De dizeres isso? O que é que mudou Raimundo? Onde é que tu estás? Ainda estás aí dentro? Haverá uma réstia tua dentro do corpo desse velho com quem vivi seis anos? A impressão que tenho é que não fosse eu o teu género, nunca terias vivido comigo estes anos todos.

Tu nunca foste o meu género! Vejo que o senhor continua transtornado pelos acontecimentos por isso é melhor ficar sobre custódia esta noite. Não vendo reacção evidente nos olhos vidrados de Raimundo, insistiu num novo tom de autoridade: A sua mulher está gravemente ferida e o senhor vai passar a noite no sala de detenção da esquadra.


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