O Mediterrâneo voltará ao centro das atenções, não pelos melhores motivos

por Cronista convidado,    9 Fevereiro, 2023
O Mediterrâneo voltará ao centro das atenções, não pelos melhores motivos
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A migração é há muito uma característica da vida na região mediterrânica. Historicamente, as populações deslocaram-se através do mar em busca de novas oportunidades, novas culturas e um novo modo de vida. No entanto, na era moderna, a migração através do Mediterrâneo cresceu em complexidade e alcance. Perante isto, novos (grandes) desafios surgem e a falta de respostas eficazes mantêm-se.

Com o início da guerra na Ucrânia, o tema das migrações começou a ganhar maior expressão pelas movimentações a leste. Paralelamente, o Mediterrâneo tem tido menos holofotes, mas não porque a situação está mais favorável… pelo contrário.

O Mar Mediterrâneo é o maior mar interior do mundo, ligando a Europa, o Norte de África e o Médio Oriente. Esta localização geopolítica única tornou-o uma rota primária para a migração humana durante séculos.

Na era moderna, a migração tornou-se cada vez mais complexa, impulsionada por uma variedade de factores, incluindo oportunidades económicas, convulsões políticas, alterações climáticas e guerras, muitas guerras. As principais rotas migratórias do Mediterrâneo mudaram ao longo do tempo, com algumas rotas a tornarem-se mais populares do que outras. Associado a isto, o número de imigrantes ilegais tem vindo a crescer dramaticamente.

Estamos a falar de dados perturbadores. Só referente à Península Ibérica, acabámos o ano com a entrada de quase 15 000 migrantes ilegais, mais do dobro que em 2012 (cerca de 6400) – dados da Frontex. Os números do Mediterrâneo Central são ainda mais graves, visto que a tendência não dá sinais de abrandamento: quase 100 000 migrantes ilegais, praticamente nove vezes mais que em 2019. Estas pessoas fogem da guerra, da fome, turbulência social, económica e política, mas também de situações climatéricas extremas.

Face a isto, os esforços da UE para gerir a migração irregular também têm fomentado a reorientação das rotas migratórias e faz com que elas se tenham tornado cada vez mais perigosas. Apesar de nos próximos meses as condições de inverno tornarem mais difíceis as travessias marítimas, o passado já nos evidenciou que isso não trava pessoas desesperadas. Não nos espantemos quando formos confrontados com imagens aterrorizadoras – como aquelas que já vimos.

As rotas e métodos de migração evoluíram ao longo do tempo, à medida que o cenário geopolítico mudou e a União Europeia impôs controlos mais rígidos sobre a migração. No entanto, estes fluxos migratórios ilegais são também uma ponte significativa na divisão de vários Estados-membros e na separação dos valores da União Europeia. Não só demonstrámos que a UE continua dividida na procura de uma solução comum para a gestão das migrações — muito dependente da vontade de cada país — como esta divergência e falta de soluções comuns conduz também a uma não partilha de responsabilidades, o que significa que alguns países estão sob mais pressão do que outros. 

Considerando estes pressupostos, é evidente que a migração ilegal continuará no futuro, com diferentes dinâmicas, intensidades e geografias devido a fatores endógenos e exógenos.

A estabilidade política e o desenvolvimento político, económico e social dos países mediterrânicos, tal como a estabilização da região do Sahel (uma das menos conhecidas mas mais preocupantes regiões do mundo), serão os principais desafios para a UE, pois serão também responsáveis pelo volume dos fluxos migratórios que a União não quer ter no seu território.

Para ser mais específico, o futuro desta região é moldado por vários fatores: conflitos militares na faixa sul do Mediterrâneo; instabilidade política, económica e social na região MOM (Médio Oriente e Magrebe); a frequência de ataques terroristas e redes de crime organizado e a consequente ação de movimentos populistas e xenófobos na UE; desenvolvimentos nos conflitos israelo-palestinianos, sírios e líbios; terrorismo e crise alimentar no Sahel; competição por recursos; degradação ambiental nos países africanos, os mais afetados pelas mudanças climáticas; falta de infraestrutura para acolher refugiados e deslocados e falta de mecanismos sociais, educacionais e culturais durante o seu período de adaptação.

A lista é infindável e deixa-nos desconfortáveis saber que, ao dia de hoje, pouco ou nada estamos a fazer para garantir segurança e condições de vida dignas a pessoas que se encontram em total estado de desespero.

Para finalizar, e se o texto já é preocupante, deixo-vos com esta nota. De acordo com os dados da Frontex, mais de 90% dos migrantes em situação irregular que chegam à Europa recorrem a contrabandistas durante as suas viagens. Concomitantemente, nos últimos anos, a União Europeia tem vindo a ser um dos principais destinos para estas redes e vítimas de tráfico de seres humanos originárias de países terceiros. A exploração sexual é a forma principal, seguida pela exploração laboral. Para os leitores terem noção do que estou a a falar, de acordo com os últimos dados recolhidos, na União Europeia, num único ano, as receitas criminosas provenientes do tráfico de seres humanos para exploração sexual estão estimadas em cerca de 14 mil milhões de euros. Sim, leram bem.

Cabe a todos nós fazer algo, seja isso um texto, uma conversa, um debate. 

Falaremos bastante do Mediterrâneo, infelizmente.

Crónica de Diogo Alexandre Carapinha.

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