O medo de falar inglês
Se uma máquina do tempo me levasse de volta a Janeiro de 1974, eu gostaria de estar no carro com o meu pai, rumo ao aeroporto de Lisboa. Era uma viagem que o meu pai fazia uma vez por semana, porque, no Portugal de Marcello Caetano, só no aeroporto é que se podia comprar o semanário britânico «Observer». Não estava à venda em Lisboa; não era leitura conveniente num país governado por uma ditadura já no seu 48.º ano.
48 anos de fascismo.
Às vezes até custa digerir esta realidade. 48 anos. Dir-se-á que os 200 e tal anos de Inquisição com que este país foi brindado foram muito piores. Não tenho meios para avaliar.
Um legado curioso que vem tanto da Inquisição como do Estado Novo é a anglofobia que só começou a passar na minha geração, mas cujo carimbo ainda se sente na área dos Estudos Clássicos nas universidades portuguesas (e espanholas: há tempos, cá em Coimbra, tivemos um congresso em que falou um orador inglês, aliás um dos melhores helenistas da actualidade: em sinal de protesto pelo facto de a comunicação do professor britânico ser em inglês, um professor espanhol saiu ostensivamente do anfiteatro; nesse mesmo dia à tarde, o professor espanhol deu a sua conferência em espanhol… e o professor inglês ficou sentado a ouvir.)
Nos Estudos Clássicos portugueses, continua a haver um certo pânico em relação a tudo o que é anglófono. A geração anterior à minha (com a excepção do Prof. Rosado Fernandes e da Prof.ª Rocha Pereira) não fala inglês. Mesmo na minha geração, o inglês ainda é difícil. Isto tem levado a que os contactos científicos, tanto em Lisboa como em Coimbra, sejam quase exclusivamente com universidades espanholas. Com certeza que há excelentes latinistas e helenistas em Espanha; mas não há maneira de fugir à realidade de que é no Reino Unido e nos EUA (e na Alemanha…) que os Estudos Clássicos são cultivados ao seu mais alto nível.
O não falar inglês e o ter medo do inglês (essa coisa tão estado-novista) têm sido bastante prejudiciais, a meu ver, no âmbito dos Estudos Clássicos lusitanos. Implicou durante muitos anos viver à margem do melhor e do mais actual que se estava a fazer na nossa disciplina. Pode parecer caricato, mas quando eu era jovem estudante em Lisboa, a nossa biblioteca não assinava a melhor revista de Estudos Clássicos do mundo: a revista «Classical Quarterly». Felizmente, isso mudou. (No entanto, continuam a faltar nas nossas bibliotecas recursos fundamentais em inglês e alemão para a aprendizagem mais aprofundada do grego e do latim. Pelo que verifiquei mesmo agora no catálogo online, a biblioteca da FLUL continua a não ter um exemplar de «The Greek Particles» de J. D. Denniston. Em Coimbra faltam-nos muitas coisas também. Penso que nenhuma tem a gramática de grego de Kühner-Blass.)
É que os Estudos Clássicos têm a característica ingrata de serem uma disciplina em que o inglês é indispensável. Será que as novas gerações vão dar a volta a esta situação e vão quebrar finalmente o ciclo anglófobo que já vem desde sabe-se lá quando? Da Inquisição? Do Ultimato? De Salazar, que não sabia falar inglês?