O mérito de um hamster

por Hélder Verdade Fontes,    16 Maio, 2023
O mérito de um hamster
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Temos visto, desde a introdução de projectos ultra-liberais em Portugal, um ressurgir da defesa acérrima da meritocracia enquanto guia orientador da sociedade. Os seus defensores reforçam a ideia de que os méritos individuais são fundamentais para a obtenção de sucesso. Dizem-nos, ainda, que compreendem a interferência de outros factores, que apelidam de externos, como a sorte ou a origem, mas que o mérito é o ponto chave e deve ser valorizado acima de tudo. 

Esta é uma visão extremamente simplista e conservadora da realidade. A ideia de um self-made man, como alguém que ascende da pobreza mais abjecta até aos lugares cimeiros da sociedade, ainda que suportado por alguma “igualdade de oportunidades”, para além de partir de uma base misógina, é praticamente uma ilusão. Tal não quer dizer que não exista alguma permeabilidade entre estratos e que alguns que nasçam em meios desfavorecidos não consigam subir na escada social — é o meu caso. Contudo, estes são francamente incomuns, o que deita por terra qualquer concepção de sociedade meritocrática alicerçada por um elevador social. Os dados mostram que em Portugal apenas 10% dos filhos dos mais pobres chegam ao ensino superior, o que cimenta a perpetuação de ciclos de pobreza. Ou os mais pobres são claramente menos meritórios do que os mais ricos, por alguma razão genética hereditária, ou existe um claro desfasamento entre mérito e sucesso.

A segunda ilação parece a mais correcta. Que sucesso poderá ter alguém que vive sem condições básicas de vida, em condições de insalubridade ou em meios disfuncionais? Os factores externos, com as condições de nascença à cabeça, têm uma influência mais do que significativa no sucesso de cada um: são verdadeiros bottlenecks de triagem societal, onde pouquíssimos conseguem romper as suas amarras. Meritocracia, então, assim como os ultra-liberais a entendem, é apenas um mantra ideológico para a manutenção do statu quo desigualitário.

“Os dados mostram que em Portugal apenas 10% dos filhos dos mais pobres chegam ao ensino superior, o que cimenta a perpetuação de ciclos de pobreza. Ou os mais pobres são claramente menos meritórios do que os mais ricos, por alguma razão genética hereditária, ou existe um claro desfasamento entre mérito e sucesso.”

Ninguém nega o papel do mérito nos (in)sucessos, nem a meritocracia, per se, enquanto modelo. O que se rejeita é que esta seja um farol num mundo sem oportunidades idênticas, bem como o constante preterir das condições que permitem esse mérito fazer-se notar (ou até existir). Em suma, o que se rejeita é falar de meritocracia sem falar de igualdade. 

É errado, também, pensar que são apenas as condições materiais que definem o sucesso de cada um. Vários estudos mostram que existe uma clara desigualdade de acessos e oportunidades a quem não pertença ao padrão étnico-cultural típico (existe alguma relação entre desigualdade material e étnico-cultural). Thomas Piketty, economista especialista em economia da desigualdade, conta-nos que, em França, alguém cujo nome tenha origem árabe tem quatro vezes menos hipóteses de ser chamado a uma entrevista de emprego do que um qualquer com nome de origem europeia. A menos que exista algum mérito em chamar-se “Michel”, ao invés de “Mohammed”, ou em nascer em meios que estimulam a criatividade e a cultura, torna-se evidente que a luta pela igualdade deve ser interseccional. 

Digamo-lo claramente: o maior entrave ao sucesso não é a falta de mérito, mas sim a desigualdade. Ora, este é o principal ponto de discórdia para quem defende uma visão meritocrática liberal da sociedade. Segundo o seu encadeamento lógico, basta seguir os princípios da justiça como equidade de Rawls: criar um contrato social a partir de um “véu da ignorância”, onde exista igualdade de oportunidades, mas, simultaneamente, uma institucionalização de algum grau de desigualdade, que fomente a competição entre indivíduos.

“O maior entrave ao sucesso não é a falta de mérito, mas sim a desigualdade. Ora, este é o principal ponto de discórdia para quem defende uma visão meritocrática liberal da sociedade.”

Todavia, um contrato social que mantém os alicerces desigualitários da sociedade, por muito que forneça condições para o mérito florescer, nunca poderá originar uma sociedade verdadeiramente meritocrática, porque institucionaliza a desigualdade hereditária no seu seio. Um claro exemplo disso é a confusão que causa falar em taxação de heranças. A menos que se aceite que existe mérito em receber o acumulado de “méritos” de antepassados, nada de mais irreal existe numa sociedade que se diz querer mais justa. 

Ter isto como pano de fundo não é o mesmo que defender uma igualdade absoluta, que é, obviamente, contra-natura. É, todavia, uma concepção realista de que a sociedade actual, alicerçada numa lógica similar à previamente descrita, subsiste à conta da desigualdade. É, inclusive, necessário, para manter o statu quo societal, um elevado nível de desigualdade. Por outras palavras, esta é uma construção social. O mesmo nos diz Rousseau: “A origem da sociedade e das leis, que resultaram em novos entraves ao fraco e novas forças para o rico, (…) fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade (…) para proveito de alguns ambiciosos, passaram a sujeitar todo o género humano à servidão e à miséria”. 

Antes de sequer podermos falarmos em meritocracia, ou no mérito como elemento para o sucesso, devemos procurar, seriamente, a igualdade. Sem ela, nenhum de nós é livre (ideia defendida, inclusive, por liberais como Almeida Garrett). E só alguém livre pode ter mérito. Urge, por isso, um novo contrato social, mais comunitário e menos hereditário, que destrua as fontes de desigualdade e que permita o florir das potencialidades de cada um. 

Um hamster, quando decide subir para a sua roda e começa a correr, não se apercebe que, independentemente do seu esforço, quer corra a uma velocidade grande ou pequena, não irá sair do sítio — a roda não permite que ele se mova para além do que já está pré-definido. As condições em que o hamster cresce não são apenas limitadoras do seu potencial: definem, verdadeiramente, a sua vida. Isto só ocorrerá até ao dia em que o hamster decida partir a roda e libertar-se das suas amarras. É pouco provável que tal ocorra, prevendo-se que fique sujeito a esta construção toda a vida. Nós temos bem mais graus de liberdade do que o hamster, mas não deixamos de estar tão ou mais amarrados a construções igualmente desigualitárias.

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