O motivador desejável

por Valério Romão,    29 Outubro, 2020
O motivador desejável
Valério Romão / Fotografia de Afonso Boffa Molinar
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Hoje venho aqui falar-vos de uma pequena criatura que se tem multiplicado de forma galopante a despeito do aparente anacronismo da sua expansão. Em pleno século XXI, assistimos a esta proliferação sem fim à vista de uma das actividades humanas mais inúteis do catálogo histórico das actividades humanas: o motivador profissional.

O motivador começa por aderir entusiasmado à fé capitalista, na esperança que esta lhe faça pelo bolso o mesmo que uma vida inteira de confessionário pode fazer pela alma. Ele acredita piamente na tese segundo a qual o sucesso depende do esforço. Toda e qualquer contrariedade advém de um esforço mal dirigido ou de um esforço em falta. No mundo do motivador profissional, não há contexto, não há acaso, não há pontos de partida melhores do que outros. É uma espécie de Ratatouille do mundo dos empreendedores: “toda a gente pode enriquecer”.

Em breve, acumula fracasso atrás de fracasso. Mas não deixa de professar a fé. Aliás, o motivador está para o capitalismo como o padre católico para a igreja de Roma: um pequeno farol onde se vêem espelhadas as virtudes professadas pela casa-mãe. Decidiu desde cedo que a sua falta de conhecimento geral dos princípios económicos elementares ou do negócio específico onde empata tempo e dinheiro nunca seriam um problema. O entusiasmo é o ingrediente secreto através do qual espera transformar qualquer empreitada num glorioso sucesso à escala planetária. O Bill Gates desistiu da faculdade para ir fazer dinheiro; o Steve Jobs também. O conhecimento, aliás, está sobrevalorizado, pensa. A mola pela qual se galga a escadaria do sucesso é o entusiasmo irrestrito. O motivador pode perder a fé em tudo, menos nisso.

Mas até o mais tonto dos motivadores acaba por entretanto perceber que não tem puto jeito para aquilo em que se implica todos os dias. Isso do negócio não é para ele. Ele bem tenta, com todas as suas forças, mete lá dinheiro, mete lá tempo, mete lá contactos, arrebanha tudo a quanto chega num abraço geral para que a coisa dê certo, mas a coisa teima em cair da árvore antes do tempo e apodrecer no chão.

Este é o ponto crucial para as aspirações do motivador. Deprimido pela sucessão de falências, o motivador precisa apenas de um pequeno empurrão para descobrir o seu verdadeiro talento. Ele porventura não nasceu para o negócio propriamente dito mas para catalisar a energia daqueles cujo sucesso depende apenas de um esforço suplementar. O motivador, por muito que queira, não sabe jogar à bola; não tem talento para isso, tem dois pés esquerdos. Mas pode ser um excelente treinador. Pode ser o treinador cujo toque de Midas transforma uma equipa banal de programadores numa startup de sucesso com aspirações a ser deglutida pelo Google a troco de uma generosa compensação monetária.

O motivador, antes de se fazer à estrada, tem de dar um jeitinho ao currículo. Há que expurgá-lo das dezenas de infortúnios e empolar – até à caricatura – os pouquíssimos sucessos. Nada que não esteja habituado a fazer desde sempre (o motivador tem de ter algo do mentiroso patológico, do obsessivo, do sociopata – de preferência, um pouco dos três – ou não funciona).

Ajeitado o currículo, o fato e o cabelo, o motivador atira-se furiosamente ao word para lá plasmar a sua versão das “regras essenciais para o sucesso”, que não diferem das inúmeras versões que, ao longo do tempo, foram entupindo as prateleiras das livrarias um pouco por toda a parte. Se tiver alguma estaleca, o motivador consegue arranjar um par de palavras em inglês para passar por conceitos fundamentais. Todo o motivador que se preze tem de apregoar a descoberta de um ingrediente secreto. E os ingredientes secretos, como se sabe, falam a língua de Sua Majestade.

De livrinho debaixo do braço e empestando toda e qualquer rede social com a banalidade das suas tiradas, o motivador vai promovendo cursos, workshops e masterclasses. Sonha com o dia em que encherá um pavilhão atlântico ou em que conhecerá os seus heróis de além-mar. Por enquanto, pelo menos, já consegue pagar algumas contas. É a primeira vez que tira algum dinheiro de um negócio.
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Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.

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