O negócio das sementes
Subia as escadas apenas com a certeza de que as desceria na volta. Voltaria a sair daquele tribunal com todas as certezas e a manter o lugar pelo qual tanto tinha lutado na sua vida. A cada degrau, uma nova imagem da sua vida, a trabalhar nos campos que rodeavam a sua aldeia. Tinha um princípio humilde, como era da praxe dos homens bem sucedidos. Fossem os seus pais divorciados, e até ele irreconhecido como filho legítimo, e o seu perfil seria perfeito para todas as reportagens possíveis e impossíveis sobre os seus inesperados feitos nesta vida.
Sabe porque está aqui? Perguntou o juiz sem qualquer aquecimento prévio. Porque sou uma pessoa bem sucedida e neste país só há inveja e despeito por aqueles que, com o seu esforço e trabalho, conseguiram subir o elevador social. Tinha ensaiado vezes sem conta esta resposta que, claramente, tinha grandes hipóteses de deixar o juiz sem vontade de continuar no caminho de uma inquirição que o prejudicasse. Tudo tinha acontecido demasiado rápido e de surpresa, mas na realidade já se preparava para este momento há mesmo muito tempo, talvez até desde sempre, desde aquele momento em que, de enxada na mão, encontrou um monte de notas com um atilho, no meio dos campos. Tinha sido um acaso estar a levantar do solo uma caixa de madeira com aquele conteúdo. Não era sua, nem poderia ser de mais nenhum dos habitantes da aldeia, por isso que mal teria guardá-la para si?
Alugou uma parcela de terreno e nele lançou semente com a ajuda de três amigos tão empreendedores como ele. Parecia pouco para alguns de fora, mas, para os dali, a pergunta que se lançava era de como aqueles rapazes tinham conseguido a proeza de trabalhar a sua própria terra. Enquanto muitos despendiam o tempo a pensar nisso, a eles os três ainda sobrou o suficiente para alugar uma estufa de seca e, em vez de venderem os frutos, secaram as sementes e venderam-nas no ano seguinte. Vender semente era muito mais lucrativo do que vender o fruto e, de semente, todos iriam sempre precisar. Assim, começou a sua primeira empresa, a Atiouro Lda.
Os lances de escadas iam-se sucedendo e a proximidade da sala de audiências preliminares não lhe dava muito mais espaço para imaginar o passado, sem lhe surgir uma pequena mas irritante dúvida, quem era este juiz? Claro que lhe sabia o nome, mas quem era na realidade este juiz? A quem pertencia? Também era assim que tinha começado a sua entrada no mundo dos negócios, desde o mercado da terra, aos intermediários das grandes distribuidoras, a primeira pergunta era sempre essa, A quem pertence? Foi aprendendo a responder sem responder. Arte da fuga a respostas conclusivas, era por aí o caminho do sucesso, ou pelo menos o do seu. Ainda antes da porta aberta por um agente judicial, teve tempo de lembrar aquilo que a sua mãe lhe disse quando fez o primeiro milhão: Não te percas, filho. As mães adoram deixar semente moral na cabeça dos filhos, já que aos maridos pouco conseguem semear. Nunca entendeu o que ela realmente quereria dizer, por isso decidiu interpretar à sua maneira e dois meses depois já ía nos três milhões.
De onde vem a sua riqueza? Do meu trabalho, claro. Mas o senhor diz não ter nada e só viver de uma pequena pensão da segurança social. É verdade, também fruto do meu trabalho. O senhor começou no ramo das sementes agrícolas, ainda mantém esse negócio? Sim e não. Passei a minha parte ao meu filho e é ele que gere o negócio. Diria que é um negócio rentável? Sim. Mas o senhor é acusado de manter uma cartelização da produção das sementes no nosso país. Presumo que na sua meninice se lembre que as sementes eram dos próprios agricultores e que se praticava a auto-produção e até a troca de espécies entre agricultores. Sim, lembro. E não acha que controlar a produção de um bem que controla todos os outros bens numa cadeia de produção é imoral? Não entendo a pergunta. Posso fazê-la de outra maneira, não acha o senhor que destruiu a liberdade dos produtores agrícolas da sua terra, que, para qualquer produção em que decidam investir, precisam das suas sementes, que são as únicas no mercado? São as únicas porque mais ninguém as decidiu produzir. O nosso país é um país livre e qualquer um pode produzir sementes, senhor juiz!
Sentia-se preparado. Tinha ensaiado este diálogo várias vezes. Primeiro ao espelho e depois com os seus advogados. Fazia-os tomar personagens mais ou menos incisivas, faça o juiz intrusivo, agora o comprometido, o moralista e o que ele mais gostava de repetir, o falso inocente. Sabia há muito tempo, desde que a sua carreira empresarial o tinha apresentado às pessoas mais importantes ou, ainda melhor, às pessoas certas, que disso era o que havia mais, os falsos inocentes. Os que até lhe pediam desculpa antecipada sobre o que iam fazer depois. O que diriam à imprensa, o que permitiriam ao ministério público conjecturar e até as perguntas difíceis que fariam. Estava preparado para tudo quando entrou na sala de audiências. Acontecesse o que acontecesse, nada o apanharia sem texto decorado e personagem construída.
Estava sentado quando aconteceu. Com o cenário instalado e os espectadores nos seus lugares levantou-se à entrada da juíza. Era uma rapariga nova que não conhecia, tinha sido sorteada na noite anterior depois de um pequeno escândalo pessoal ter aparecido de surpresa ao mais famoso juiz do país. A juíza sentou-se e dirigiu-se à sala, Senhores magistrados do ministério público, senhor advogado, senhor arguido, minhas senhoras e senhores da imprensa, declaro aberta a sessão. Pela primeira vez, desde há muito, sentiu-se nervoso. Não se tinha sentido assim com o nascimento de nenhum dos filhos ou com a assinatura de nenhum contrato. Tudo sempre lhe parecia previsível e isso queimava logo qualquer acendimento de nervosismo, mas ali à sua frente tinha uma juíza que não conhecia de lado nenhum e finalmente permitiu-se ir do nervoso ao medo, em segundos. A quem pertenceria ela?