O novo filme do Tarantino
Fui ver o último Tarantino, o que já de si é um acto nostálgico. Evitei ler o que fosse sobre ele, tirando a sinopse. Passava-se no fim da era dourada de Hollywood, entrava a família Manson. Com isso, adivinhei o fim do filme. Não me parece difícil.
###Spoilers daqui para a frente###
Quase todos os filmes dele terminam da mesma maneira. Inglourious Basterds com uma judia a incinerar o Alto Comando Nazi, incluindo Hitler. Django Unchained com um antigo escravo a trucidar escravocratas e a incinerar uma plantação. Era uma vez em Hollywood tinha de acabar com um actor a incinerar a família Manson, a salvar Sharon Tate e a salvar por arrasto a idade de ouro de Hollywood, encerrada pelo seu assassinato. (Como bónus, ainda aparece um filme dentro do filme onde se incinera o Alto Comando nazi.)
Há poucos momentos onde não se está a ver uma tela ou um ecrã, real ou subentendido. Aquilo que em outro filme seriam flashbacks são aqui clips de filmes. Todo o filme são filmes dentro do filme. Filmes e séries. Pouca gente imaginaria que o futuro seria a televisão.
Há um momento notável, fantasmagórico, eléctrico em mais do que um sentido, no episódio final da série de Scorcese Boardwalk Empire, onde um gangster no fim da Lei Seca assiste a uma das primeiras demonstrações de um aparelho de televisão. Foi das poucas ocasiões em que vi encenar-se com a tv o mesmo nível de nostalgia dedicado ao cinema. Era uma vez em Hollywood, ensaia-o. Fica-se com a ideia que uma nostalgia cinematográfica pelo passado da televisão é algo normal, algo antigo, com uma densidade próxima à do cinema.
Porém, ver televisão e cinema misturados ainda escandaliza muita gente. No último festival de Cannes, fez mais mossa a presença de filmes da Netflix que a de Roman Polanski, personagem do filme de Tarantino e, na vida real, autêntico abusador de menores.
E é por essas bandas que o filme de Tarantino não se passa só no fim de uma era mas de duas. Do fim da época de ouro de Hollywood mas também da era onde se pode realmente ser nostálgico dessa era sem perceber que colado aos velhos posters, às suíças, aos Ray Bans e piscinas muito azuis contra o negro da noite vem uma masculinidade bruta, inocente, intoxicante e tóxica, que se pode aproveitar, claro, porque existiu e é uma força poderosa, mas precisava de mais trabalho do que lhe foi dedicado neste filme.
É um filme carismático, magnético, mas onde se trata todas as mulheres como se fossem caricaturas foscas – objectos de desejo, deusas, esposas megeras. Sharon Tate a personagem principal feminina passa o filme praticamente em silêncio ou emudecida por sons ambientes. O personagem de Brad Pitt pode ter ou não morto a sua mulher – representada como uma megera. Há uma grande dose de violência física contra mulheres, como em quase todos os últimos filmes de Tarantino, onde são desmembradas, enforcadas, incineradas com um lança-chamas depois de mastigadas por um cão de ataque. Neste filme, são as assassinas da família Manson que mataram na vida real uma Sharon Tate grávida, portanto, diz-nos o filme, merecem – não interessa particularmente que para além de assassinas também tenham sido usadas como escravas sexuais, e portanto vítimas.
Há também Polanski, que também pouco diz ou faz. Talvez pela brevidade não tem tempo para abusar as muitas menores que aparecem pelo filme a pedir por todos os lados para serem abusadas. Os nossos heróis sabem resistir-lhes porque as ditas menores, fica-se a saber, não são vítimas nenhumas mas sereias assassinas da seita dos Manson. Era muito difícil não resistir às menores assassinas no fim da era de ouro de Hollywood.
É divertimento, dirão que não vale a pena ser politicamente correcto. Talvez, mas também é o fim da era em que se pode incinerar nazis num filme sem se ser acusado de alguma coisa. São tempos complicados os que vivemos, tal como eram complicados os tempos em que o filme se inspirou. A velha Hollywood não terminou com o assassinato de Sharon Tate. Terminou em parte com a consciência da sua própria grunhalhice, que já não parecia natural a novos públicos, em parte por toda uma panóplia de razões económicas, políticas, concorrenciais. Era fixe pensar que sim, que era uma vez em Hollywood e que no fim viveram todos felizes para sempre depois de chacinados os maus.