O numinoso
Gosto da palavra «numinoso». Vem do substantivo latino «nūmen», que se refere a algo da esfera do sobrenatural: talvez um poder ou uma influência divina, talvez a própria ideia de divindade. Mas eu diria que o sentido essencial de «nūmen» está ligado à sua etimologia, à sua ligação com o verbo «nuō», que significa à letra fazer um sinal com a cabeça. O mesmo étimo indo-europeu está presente em grego (no verbo νεύω, «fazer sinal com a cabeça») e em sânscrito, numa forma verbal que significa «move-se». Gosto de pensar no «numinoso» como uma maneira de Deus nos acenar.
A arte é por excelência o campo de acção do numinoso e, quando contemplamos o tecto da Capela Sistina ou ouvimos a música de Bach, sentimos esse estremecimento de sermos objecto do aceno numinoso de Algo que se move: Deus. A filosofia grega preferia conceber Deus como entidade isenta de movimento, mas não é assim que judeus e cristãos entendem o seu Deus que, logo no versículo 2 do Génesis, é descrito como tendo «um espírito» que é entidade dotada de movimento (levado «sobre as águas», como no original hebraico e na Vulgata, ou «sobre a água», na Septuaginta).
O Deus cristão é um Deus que se move; e dir-se-ia que apercebermo-nos da sua moção provoca em nós comoção. Sempre que me comovo diante de uma catedral gótica, ou diante da Pietà de Michelangelo, sinto isso como aceno de que Deus se moveu em mim. Agradeço essa experiência numinosa do sagrado à inspiração de tantos artistas e por isso dou plena razão a Ovídio quando escreveu que os artistas, enquanto «vates» (ou seja, mediadores entre o sagrado e o humano), são eles próprios sagrados («sacri» em latim) e objecto do cuidado divino: «existem inclusive aqueles que pensam que temos um nūmen» («sunt etiam qui nos numen habere putent», Amores 3.9.18).
A grande arte pictórica, arquitectónica e musical tem um papel insubstituível na experiência religiosa, porque a inspiração numinosa que lhe subjaz tem uma validade que pode ser sentida e aceite independentemente da razão. A experiência de ouvir a Paixão Segundo São Mateus de Bach é diferente de ler a seco o texto grego de Mateus porque não é possível, na leitura, desligar a razão. Quando leio Mateus pergunto-me se o papel de Judas na entrega de Jesus às autoridades terá verosimilhança histórica ou se não é uma retroprojecção nascida a partir da inimizade contra os judeus dos primeiros cristãos (pois o nome Judas sugere de imediato Judá e judeus). Se foi Judas a entregar Jesus às autoridades, por que motivo não há menção disso no texto mais antigo que fala desse facto (1 Coríntios 11:23)?
Por que razão só em Mateus os judeus presentes na condenação de Jesus dizem «o sangue dele <caia> sobre nós e sobre os nossos filhos»? Nenhum outro evangelista regista esta carta branca para a culpabilização eterna de judeus por parte de cristãos. Quando Mateus menciona a coroa de espinhos colocada em cima da cabeça de Jesus, ocorre-me sempre perguntar por que razão não existe coroa de espinhos em Lucas. E por associação de ideias, lembro-me da coroa de espinhos, essa tão famosa quanto duvidosa relíquia da catedral de Notre Dame, templo que conserva ainda fragmentos da «vera» cruz e até um prego com que Jesus foi crucificado (o que por sua vez me leva a pensar que Marcos, Mateus e Lucas nunca dizem que Jesus foi pregado na cruz).
No entanto, quando oiço isto transposto e sublimado pela música de Bach, tudo adquire outra dimensão. Não se trata já de questionar a sua verosimilhança histórica. Não se trata de analisar por meio da razão. A grande arte religiosa (e Notre Dame é disso um extraordinário exemplo) leva-me para outro plano. E nesse plano – onde actua o numinoso – posso sentir a experiência do sagrado como aceno de Deus.