‘O Outro Lado da Esperança’, de Aki Kaurimäki: uma crónica sobre o altruísmo e a crise moral na Europa

por Tiago Vieira da Silva,    6 Novembro, 2017
‘O Outro Lado da Esperança’, de Aki Kaurimäki: uma crónica sobre o altruísmo e a crise moral na Europa
PUB

O mais recente filme do finlandês Aki Kaurimäki, O Outro Lado da Esperança/Toivon Tuolla Puolen (2017) dá continuidade ao universo que o cineasta explorou em Le Havre (2011), focando-se no percurso dos refugiados na Europa e a paisagem portuária como pano de fundo – dois elementos que competem um com o outro no título de uma trilogia da qual este se diz ser o segundo filme (Trilogia dos Portos ou Trilogia dos Refugiados?), ainda que Kaurismäki tenha afirmado que não iria voltar a filmar.

Ainda que a paisagem portuária seja mais omnipresente em Le Havre, também assome em O Outro Lado da Esperança como o lugar a partir do qual se desencadeia uma das acções cruciais do filme, a chegada de Khaled (Sherwan Haji), refugiado sírio que aparece pela primeira vez irrompendo do carvão de um navio cargueiro atracado num porto de Helsínquia. Paralelamente, seguimos a história de Wikström (Sakari Kuosmanen) um homem que, desejando mudar de vida, compra um restaurante onde trabalham três caricatos funcionários; mais tarde, a vida de Khaled cruzar-se-á com a vida destes personagens.

O Outro Lado da Esperança é um filme que, não obstante se insurgir contra o desprezo que o país manifesta perante os conflitos armados nos países muçulmanos e o sofrimento dos refugiados que tentam desesperadamente encontrar um lugar na Europa, apresenta ao mesmo tempo uma galeria de personagens, que, na sua cómica fisionomia séria, sisuda, são também capazes do mais louvável altruísmo – tal como Marcel e os demais personagens do seu filme anterior, Le Havre, que se unem para impedir que uma criança vinda de África seja deportada. O facto de Kaurismäki não se servir de intrigas melodramáticas, sentimentais, a fim de narrar esta comovente história sobre o sofrimento e o altruísmo humano torna O Outro Lado da Esperança um filme ainda mais complexo e interessante, sobretudo pela maneira como se desdobra entre o humor e a seriedade.

Na encenação rigorosa mas ao mesmo tempo franca, essencial na criação do que podemos considerar um cinema desprovido de artifícios grandiloquentes, o que salta imediatamente à vista são as cores vivas, os planos longos, a música diegética, isto é, que vem do próprio espaço fílmico, durante as actuações de instrumentistas. Mas, a par com o rigor da mise-en-scène, encontramos também um aprumado e pertinente sentido de humor, dois recursos que Kaurismäki equilibra sobriamente a fim de eliminar quaisquer leituras sentimentais da história, ainda que a atmosfera pesarosa não seja negada; pelo contrário, esta é reforçada pela encenação que encontra na simplicidade, no retrato de um quotidiano com peripécias narradas sem dramatismo, a melhor forma de transmitir a sua mensagem humanista (na qual encontramos uma dose de activismo), que revela fortes afinidades com Yasujiro Ozu, como o próprio Kaurismäki já chegou a referir.

Kaurismäki, que já afirmou várias vezes ser um nostálgico, não o diz à toa; é por isso que ainda filma em película e que decidiu ir viver para Viana do Castelo em 1989, onde passa metade do ano, atraído não apenas pela tradição naval e portuária, mas também porque na altura era uma cidade “antiga”, segundo as suas próprias palavras. Sendo assim, o que é que é verdadeiramente importante para um nostálgico num mundo em constante transformação e mudança? Para Kaurismäki, é talvez a crença na humanidade, esse fenómeno atemporal e imprescindível que é uma das grandes forças deste filme. Por vezes, as manifestações de bondade e altruísmo dos seus personagens parecem até irreais, incapazes de corresponder à realidade do mundo que nós conhecemos.

Esta tragicomédia faz todo o sentido, não só no panorama actual, mas também na própria filmografia do realizador. Quando acabamos de ver O Outro Lado da Esperança, percebemos que o universo desta trilogia – que o realizador disse não completar – não está esgotado. Todavia, sendo Kaurismäki uma figura peculiar, imprevisível, talvez não deva ser levado a sério quando diz que este é o seu último filme. Espero estar certo.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.