O país que aplaude, mas não apoia

Pensamos pouco na cultura — e menos ainda nos artistas. Todos adoramos ir a um concerto, visitar uma exposição de arte ou assistir a uma peça de teatro. Mas raramente refletimos sobre o que está por trás dessas experiências: o esforço, a dedicação e, muitas vezes, a instabilidade que marcam a vida de quem faz da cultura a sua profissão.
A cultura é amplamente apreciada, mas seguir uma carreira artística continua a ser um risco que poucos estão dispostos a correr. Os artistas vivem num equilíbrio frágil: podem alcançar o sucesso com um álbum, uma peça ou uma performance, mas basta um momento menos bom para tudo mudar. Estavam no topo, reconhecidos e, de repente, deixam de vender, perdem visibilidade e o reconhecimento desaparece tão rapidamente quanto chegou.
Mas há um outro lado, menos visível, que continua sistematicamente esquecido: quem é que faz a arte acontecer? Não falamos apenas dos rostos visíveis no palco, mas dos técnicos de som e luz, dos cenógrafos, figurinistas, maquilhadores, produtores, assistentes de palco. Essas pessoas, que são a espinha dorsal da cultura, ficaram largamente desamparadas durante a pandemia da COVID-19. Quando os teatros fecharam portas, muitos destes profissionais perderam o único rendimento que tinham — e não houve, para a maioria, garantias sólidas, apoios reais, nem uma estratégia de proteção social que respondesse à urgência da sua situação.
Mesmo fora de contextos de crise, a precariedade reina. A esmagadora maioria dos trabalhadores da cultura vive de recibos verdes, bolsas temporárias ou contratos intermitentes. E, no entanto, são estes que tornam possível que um espetáculo vá a cena. São raros os casos — como alguns técnicos com contratos efetivos nos teatros — que conseguem algum grau de estabilidade. Mas são a exceção, não a regra.
Precisamos de pensar mais na cultura, mas, sobretudo, em quem a constrói todos os dias com paixão, mesmo sem garantias. Valorizar a arte é, também, valorizar os artistas.
Temos um Orçamento de Estado reduzido para a cultura, e isso reflete-se em tudo: nos apoios escassos, nas oportunidades limitadas e na precariedade que afeta tantos artistas. Em Portugal, há músicos que ensaiam à noite depois de longos turnos de trabalho, atores que dão aulas para conseguir pagar as contas, escritores que escrevem às escondidas do tempo — porque a arte, por si só, não chega para viver.
Não há garantias para arriscar em Portugal. Um jovem artista tem de lutar contra a incerteza constante, muitas vezes sem apoios, sem segurança, sem perspetiva de futuro. É difícil apostar na criação quando o país não aposta em quem a cria.
Valorizar a cultura não pode ser apenas aplaudir no final de um espetáculo. Tem de ser um compromisso real — com políticas públicas que apoiem, com financiamento adequado, com uma sociedade que reconheça que, sem cultura, não há identidade, memória, nem futuro.
Curiosamente, em tempos de eleições, o discurso muda. Subitamente, políticos apressam-se a encher os cartazes com palavras como “apoio à cultura” e “valorização dos artistas”. Multiplicam-se os eventos culturais, os programas de apoio, os palcos nas praças principais. Mas quase sempre os nomes escolhidos são os mesmos de sempre — artistas já consagrados, muitas vezes de fora do concelho — enquanto os criadores locais e emergentes continuam a ser ignorados. A política cultural torna-se assim um espetáculo para o eleitorado, esvaziado de compromisso real com quem faz da arte o seu ofício.
É urgente que se pense numa gestão cultural mais responsável, sobretudo a nível autárquico. Há fundos, há equipamentos, há estruturas. O que falta, muitas vezes, é vontade política de apostar de forma contínua, estruturada e justa em quem vive da cultura. Isso passa por criar oportunidades reais para os artistas da região, por contratar emergentes em vez de recorrer sempre aos mesmos nomes, por garantir condições dignas de trabalho a todos os envolvidos na criação artística — nos bastidores e no palco.
A arte não pode ser só entretenimento de campanha. Tem de ser vista como o que é: um bem essencial, uma força viva na construção de uma sociedade mais humana. E isso implica cuidar de quem a faz.
Torna-se cada vez mais evidente o perigo de associar a arte a um mero produto de capital. Quando a criação artística é tratada como um bem de consumo como outro qualquer — sujeita às mesmas lógicas de mercado, de lucro e de espetáculo — perde-se aquilo que nela é mais vital: o seu poder de transformação, de questionamento, de criação de laços humanos. Reduzir a arte ao que “vende” é amputar-lhe a alma.
Se continuarmos a olhar para a cultura como um luxo e não como uma necessidade, estaremos a condenar o país à mediocridade. Um país que não investe na sua cultura, que não protege os seus artistas, é um país que empobrece — não só economicamente, mas espiritualmente. Porque a cultura não é apenas entretenimento. É pensamento crítico, é identidade, é resistência: e é, essencialmente, o futuro.
É urgente mudar o discurso, mas, sobretudo, a prática. Porque pensar pouco na cultura é, no fundo, pensar pouco em Portugal, um país que cheira e vive a cultura.
Crónica de Manuel Neves, estudante de Direito e Secretário Nacional da Juventude Socialista, e Francisco Silva, estudante de Direito e Programador Cultural da Associação Académica da Faculdade de Direto de Lisboa.