O paradoxo da festa da família
Tomando hoje um café rápido na Baixa de Coimbra antes de me aventurar na lista de espera de um barbeiro, alguém ao meu lado dizia à sua amiga: «já sabes que sou católica! O Natal é a festa da família!».
Eu, que estava sentado na mesa ao lado a olhar fixamente um ponto remoto numa imaginária nuvem longínqua (o meu marido André e eu já nos rimos com estes meus olhares vidrados), fiquei a remoer a frase da senhora e, não pela primeira vez, dei por mim a pensar no gigantesco equívoco que consiste em ver no cristianismo a religião da família.
Veio-me à cabeça as palavras de Jesus: «os filhos desta vida casam-se e <as mulheres> são dadas em casamento; mas aqueles que foram julgados dignos daquela <outra> vida e da ressurreição dos mortos não se casam nem <as mulheres> são dadas em casamento» (Lucas 20:34-35).
Lembrei-me também do homem que, em Lucas 14:20, diz que não pode comparecer no banquete dado por «certo homem» porque «desposei uma mulher e, por isso, não posso ir». Sabemos que, para cristãos no século II, esta passagem de Lucas era tida como significando que o matrimónio é incompatível com a vida cristã. Para estes primeiros cristãos (referidos por Clemente de Alexandria), ser seguidor de Cristo implicava a abdicação de ser casado ou pai (ou mãe) de filhos.
«Até quando prevalecerá a morte?» pergunta Salomé a Jesus num dos evangelhos apócrifos. A resposta de Jesus: «Durará enquanto vós, mulheres, parirdes».
Mas a ideia da celebração do Natal como festa da família trouxe sobretudo à minha cabeça as seguintes palavras de Jesus, frequentemente adulteradas nas traduções correntes da Bíblia. O que Jesus diz, realmente, é: «Se alguém vem ter comigo e não odeia o seu pai, a sua mãe, a sua mulher, os seus filhos, os seus irmãos, as suas irmãs e até a própria vida, não consegue ser meu discípulo».
E não é num qualquer evangelho apócrifo que Jesus diz isto. É em Lucas 14:26.
A obsolescência do casamento, da procriação e da família é um dado basilar do primeiro cristianismo. Não serve de nada os cristãos dizerem que, na Bíblia, Deus diz «multiplicai-vos», pois isso aplica-se a OUTRA religião: ao judaísmo.
Não há «multiplicai-vos» nos primeiros textos cristãos, nomeadamente nas cartas autênticas de Paulo e nos evangelhos canónicos (os apócrifos, esses, são militantemente contra a procriação e a família).
No primeiro cristianismo, a razão da obsolescência do casamento e da procriação prende-se com a ideia de que a nova ordem cósmica trazida por Jesus – esse reino dos céus radical onde ninguém casa nem ninguém é dada em casamento – vai acontecer já, ainda na primeira geração de cristãos. Quem não acredita no que estou a dizer, leia Lucas 9:27, 1 Tessalonicenses 4:13-18, 1 Coríntios 15:51-52, Romanos 13:11-12.
Claro que podemos chamar ao Natal, se quisermos, a festa da família. Mas devemos pensar também que, ao celebrarmos em família o nascimento do Menino, festejamos em família a vinda ao mundo de um profeta que veio pregar o fim da família.
(na imagem: a «Sagrada Família» de Carlo Maratta)