O património indesejado em Portugal não é um mito

por Cronista convidado,    17 Junho, 2020
O património indesejado em Portugal não é um mito
Fotografia de Mauro Lima / Unsplash
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O conceito de património e a forma como o compreendemos pode efectivamente sofrer uma mudança, sendo que a retirada de estátuas que representam símbolos de um passado indesejado poderá ser um acontecimento marcante para a história do património, da nossa memória e identidade, mas está muito longe de ser suficiente e eficaz.

A actualidade tem sido profundamente marcada pelos protestos contra o racismo, algo que se continuará a realizar pelo bem da humanidade, apesar de ser lamentável ter ainda que andar a fazer protestos contra algo que é tão básico como os Direitos Humanos. Em grande parte do mundo, os protestos fizeram-se sentir de forma pacífica e a mensagem tem iluminado muitas consciências, no entanto, também foram notórios os atos de grupos que vandalizaram estátuas por estas representarem figuras que, de algum modo, se relacionavam com um passado histórico indesejado: a escravatura, a época dos descobrimentos e a colonização. Estátuas como a de Cristóvão Colombo, nos Estados Unidos da América, a estátua de Edward Colston, em Inglaterra, a estátua do rei Leopoldo II, na Antuérpia, e, em Portugal, a estátua de Padre António Vieira, entre outras. Além disso, alguns autarcas, pelo mundo, já fizeram pedidos para retirar estátuas alusivas à escravatura ou a regimes ditatoriais. Não é a primeira vez que o património é vandalizado no decorrer de uma guerra, revolução ou manifestação, justificando-se pelo próprio significado que o acompanha. 

O património representa mais do que algo material, é identidade e memória. Dois conceitos que ultrapassam toda a semântica da palavra património, que problematizam e complexificam todo o entendimento do mesmo. Partindo da definição de Pierre-Laurent Frier, para quem património é ‘’o conjunto de marcas ou vestígios da atividade humana que uma comunidade considera como essenciais para a sua identidade e a sua memória coletiva e que deseja preservar a fim de as transmitir às gerações vindouras‘‘, podemos entender que o património é sempre um processo de seleção. Seleção feita por um coletivo humano decidido a preservar o que percepciona como ‘’externalidade cultural‘‘ que se radica no presente e se projeta para o futuro. Mas se é feita uma selecção com base em motivos sólidos e justificados, também não poderá ser feita uma renúncia justificada a tal seleção? Porque é que se continua a sofrer tanto com a perda mesmo quando é por uma boa causa? Porque se vandalizam apenas as estátuas? Não estaremos à beira de um novo paradigma face ao conceito de património?  O conceito de património e a forma como o compreendemos pode efectivamente sofrer uma mudança, sendo que a retirada de estátuas que representam símbolos de um passado indesejado poderá ser um acontecimento marcante para a história do património, da nossa memória e identidade, mas está muito longe de ser suficiente e eficaz.

Facilmente nos identificamos com algo através de símbolos que reconhecemos e representações de pertença, um ato que não serve só para nos categorizamos a nós próprios e nos apresentarmos aos outros, mas também para conseguirmos imaginarmo-nos coletivamente. Cada grupo ou indivíduo vai construindo a sua identidade com base no apego ao passado, mas cuja natureza inerente ao processo evolutivo humano e transformador de cada sociedade, faz com que a identidade ou as identidades, sejam mutáveis, (re)inventadas ou (re)construídas, transformando-se ao longo do tempo. A noção de identidade pode ser entendida como o sentimento de pertença, reconhecimento ou a natureza de um coletivo humano, sendo que se pode manifestar através do património, mas o processo de identificação face a um bem patrimonial não é igual para todos os membros de uma comunidade. Essa mesma comunidade vai-se transformando, sendo que, a identificação com o património também se vai alterando 

Numa perspectiva revolucionária, o património indesejado tem várias formas de ser abordado: ou é destruído totalmente ou são removidos, ou alterados, os símbolos que empoderam certos acontecimentos passados, para que no presente em que o passado histórico ainda está vivo, deixe de gerar contestação e comece a criar uma nova identidade, mais positiva, sem más lembranças. A atual vandalização de estátuas com um caráter histórico indesejável provém da difícil relação que a nossa identidade tem com as más memórias coletivas, memórias que não se querem transmitir às gerações do futuro, cuja revolução vem quebrar com o passado e marcar um novo início. Mas será que é com o esquecimento e retirada desses elementos patrimoniais da praça pública que vamos ter uma nova era? Provavelmente, não.

Destruir e vandalizar o património é destruir a memória de um povo da mesma forma que se varre o lixo para debaixo do tapete. Como disse tão acertadamente Hobsbawn ‘’em época de revolução, nada dá mais força do que a queda dos símbolos’’, neste caso a queda dos símbolos remete não só para o fim de memórias relacionadas com a escravatura, mas também do mito de que os portugueses foram meiguinhos, pacíficos, muito mais brandos que os ingleses ou franceses no que toca a colonizar um povo que ‘‘descobriram’’. Se os portugueses tivessem sido heróis e bonzinhos, nós teríamos um Museu da Colonização. Creio que, neste caso, os símbolos não devam ser retirados, simplesmente, para apagar da memória coletiva uma época, mas para revelar a verdade de uma época. Os portugueses foram racistas, e muitos continuam a ser, desde a época dos descobrimentos, que foi sempre tão branqueada em prol de enaltecer e unificar uma nação, até hoje em que se continuam a segregar afrodescendentes dos privilégios reservados a qualquer ser humano.

No entanto, creio que o problema não reside na fisicalidade arquitetónica do edifício, na forma da pintura ou da escultura, ou já agora, nos livros de Fernando Pessoa (será que se vai fazer um revival da Noite de Cristal onde se queimarão todos os livros de escritores que têm pensamentos desumanos?) mas sim na fraca educação e explicações onde paira sempre a supremacia branca como justificativa subliminar, nos livros de História que acompanharam toda a nossa escolaridade, nas fracas legendas e flyers informativos dos bens culturais, nas visitas guiadas romantizadas, na ideologia das publicidades, na agenda e programação dos média, na ideologia política, até, se não, na fraca recuperação que o povo teve dos 48 anos de ditadura, que acharam que tudo ficaria bem apenas com a Revolução do dia 25 de Abril. É todo um véu que cobre as nossas consciências, de tecido opaco e com cheiro a mofo. As ideias que sustentam uma qualquer ideologia nunca morrem, mas podemos fortalecer novas consciências através do conhecimento, da investigação e da educação em prol de enfraquecer as ideias de fundamento desumano. Se vamos vandalizar estátuas de colonizadores, esclavagistas ou missionários, então vamos vandalizar também arquitetura do Estado Novo e da Companhia de Jesus, vandalizar Castro Marim por lá ter sido espaço do degredo tantos séculos (até durante o Estado Novo), não passem mais o filme ‘’A Canção de Lisboa’’ de Cottinelli Telmo nas televisões ou cortem a cena da chamada para o exame de Clínica Médica, não vão de férias para Lagos porque foi dos principais portos de embarcações de escravos (e onde recentemente foram encontradas mais de uma centena de ossadas de afrodescendentes, atirados para o aterro da época – século XV), abaixo com o Padrão dos Descobrimentos e todos os edifícios cuja História vamos investigar para vandalizar como mote de protesto contra o passado indesejado. O passado de um coletivo nunca é isolado, está agregado a uma teia de acontecimentos e a um património, cuja destruição seria um efeito dominó que não resultaria nunca nos desejos por que tanto lutam. 

Destruir o património não é a solução, mas pensá-lo de outra forma talvez, criar novas práticas também, mesmo que seja a retirada das estátuas, mas e o resto? Esse passado indesejado não está só nas estátuas. A História deve ser descortinada para reflectir, não para produzir atos violentos. E não, não perderemos o orgulho em ser português por fazer uma releitura da História, mas devemos reconhecer uma cultura de reflexão, recuperar a consciência de atos passados e projectar um futuro já há muito ambicionado. 

Crónica de Rute Tavares
Licenciou-se em Jornalismo e Comunicação, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, mas foi com a realização de um curso menor em História da Arte que prosseguiu para o Mestrado em Arte e Património. 

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