O pequeno poder ou como evitar a Amazon
Escolher é uma actividade intensa, porque implica deixar sempre algo de fora. Para alguns funciona como um pequeno consolo, para outros é uma tortura diária. Escolher não é fácil, sobretudo se o fizermos com consciência. O tempo passa e exige decisões, empurra-nos com impaciência contra a parede do presente.
Há um conto de Antonio Tabucchi sobre as reminiscências de um velho general húngaro que, após ler um poema de Yeats, intitulado “Men improve with the years”, interroga-se se o tempo, ao melhorar os homens, não os força também a tornarem-se outros. A transformarem-se em algo que não eram, que nunca foram. Desconheço os segredos ontológicos que guarda a nossa Natureza. Talvez o tempo nos melhore e nos mude, como espécie e como indivíduos. Agora, porém, não é momento para retrospectivas. Ainda não é momento para retrospectivas.
A pandemia desmascarou os muitos dos mecanismos insustentáveis em que a sociedade do capital está alicerçada. Os dois meses de quarentena que vivemos puseram o mundo à beira do abismo. O iminente colapso económico exige uma mudança radical e, ainda assim, tudo indica que as corporações irão engulipar os mais pequenos, que os ricos ficarão mais ricos e os pobres, bem, já se sabe.
É por isso que tenho vindo a considerar cada compra que faço como um pequeno acto político. Pode ser extenuante, mas sinto que tenho um papel, por minúsculo que seja, na distribuição (nem que seja regional) da riqueza. “Comprar perto” é contribuir para a comunidade onde cada um de nós está inserido. É virar as costas às corporações que estão literalmente a destruir o nosso mundo.
Não quero fazer deste texto uma declaração contra bilionários, que toda a gente sabe que não deviam existir. Quero que este texto fale das alternativas que ainda temos ao nosso dispor, das iniciativas que surgem todos os dias para dar a oportunidade a pequenos projectos de fazerem frente aos gigantes. É esse o nosso poder enquanto clientes: saber escolher a quem compramos. Um poder capaz de mudar o mundo.
Há mil razões para não gostar de gigantes: o tratamento inumano que padecem os seus “colaboradores”, a permanente fuga aos impostos, a recolha de dados da concorrência e dos seus clientes. Quando cedemos e compramos a um destes retalhistas, não só enriquecemos os mais ricos, perdemos uma oportunidade de cooperar com aqueles que trazem vida e diversidade à nossa comunidade.
Em cada terra ao longo deste país existem comerciantes e produtores independentes. Associações, cooperativas, pequenas e médias empresas importantíssimas para cada região. De livrarias a projectos alimentares, o que não faltam são alternativas que promovem a sustentabilidade e fortalecem-nos enquanto comunidade. Que este tempo de confinamento e desconfinamento, em vez de nos virar para cilada facilitista das grandes corporações, nos aproxime dos humanos.
As catástrofes vêm de mão dada com as mudanças radicais. As catástrofes aceleram o tempo e o tempo impõe transformações. No poema de Yeats, assim como no conto de Tabucchi, sente-se a resignação de alguém vencido pelos anos. De alguém derrotado pelo tempo. Não sei como será connosco, esta crise está longe de terminar. Espero que, quando a pandemia passe (vai passar) tenhamos aprendido a usar o nosso pequeno poder. Se o tempo nos melhora, que traga mais cooperação, menos ganância e menos individualismo.