O pobre desejável
Como é que se faz um pobre? Parece simples, até porque pululam receitas um pouco por todo o lado, mas fazer um pobre exige cada vez mais cuidados. Não é qualquer pobre que serve à manutenção da ordem social. Um pobre demasiado pobre poderá tentar colmatar as suas necessidades mais básicas por via de uma marginalidade intermitente, i.e., não lhe será alheia a noção de furto em caso de fome, por exemplo. A sua energia intelectual concentrar-se-á na elaboração de planos que lhe permitam sobreviver. Pouco se importará com a lei e a noção de justiça desde que não seja apanhado. A sua argúcia nunca deixará de ser uma argúcia de desenrascado e os constrangimentos que possa sentir por estar entre a sociedade e as suas regras e o outro lado onde impera a necessidade mais animal nunca serão suficientes para sentir uma vergonha autêntica, uma vergonha social capaz de lhe refrear o ímpeto criminal. A necessidade falará sempre mais alto. A consciência nunca terá a força da fome. Um pobre assim, para além de contribuir muito pouco do ponto de vista fiscal – pois a sua sobrevivência implica furtar-se tanto quanto possível a todo e qualquer imposto – não é fiável. É capaz de votar da forma correcta desde que lhe façam promessas adequadas – mesmo que irrealistas e cronicamente incumpridas – mas não é leal. A qualquer momento é capaz de entregar o seu voto a um populista qualquer porque este lhe propõe a revolução – mesmo que não dessa revolução não se anteveja qualquer mudança no seu estado de pobreza. Um pobre deste tipo não é fiável; por razões óbvias, não tem ideologia.
Fazer um pobre implica algum contra-senso, pois o pobre é tanto melhor quanto mais se investir nele. Há que limar-lhe com precisão as necessidades fundamentais. É importante que não passe fome, pelo menos aquela fome que implica um défice calórico de tal ordem que o desejo se converte em desespero. O seu desejo deve ser moderado. Deve-lhe ser garantida a possibilidade de comer um bife de vez em quando. De jantar fora em dias de festa. De provar uma ou duas vezes na vida os acepipes acessíveis apenas às pessoas que não padecem de pobreza. A sua satisfação deve ser cuidadosamente contrariada pelo seu desejo de mais e melhor. Só assim é possível inculcar-lhe de forma permanente o conceito de esforço. Mas mais importante do que o esforço é a inveja. O pobre deve invejar tudo quanto esteja imediatamente acima dele. Mas não pode ser uma inveja cega; esta deve vir acompanhada de uma noção clara de merecimento. No seu espírito de pobre tem de se ir sedimentando a ideia de que o sucesso alheio é justo e, de algum modo e através do esforço, atingível. Um pobre tem de sonhar que pode deixar de o ser. Um pobre sem sonhos é um pobre conformado, preguiçoso, exangue do voluntarismo necessário para produzir mais. Apesar de pacífico e obediente, um pobre assim não cumpre o seu potencial.
É absolutamente necessário providenciar-lhe meios para arrendar ou comprar uma casa, mesmo que seja apenas uma gaveta minúscula num arrabalde distante. Os pobres sem meios acabam por ir parar à rua e são, para além de um problema de higiene pública, uma visão aborrecida e desagradável. Outros ainda constroem autênticos enxames de tijolo e chapa de zinco – por vezes nas zonas com melhor vista e mais potencial imobiliário – e depois é praticamente impossível tirá-los de lá. Nesses ambientes infectos gera-se todo o tipo de problemas e vícios decorrentes da pobreza organizada: crime, tráfico e consumo de drogas, doenças contagiosas, etc. Um pobre tem de ter um tecto a que chame seu. Tem de estar convencido de que esse tecto, mesmo que na orla mais longínqua da sociedade, faz parte dela.
Quanto à bebida, a fórmula é amplamente conhecida. É necessário censurar publicamente a ingestão exagerada de álcool não fazendo porém qualquer oposição legislativa à sua disponibilidade. Um pobre com inveja tem tendência a afogar as mágoas pelo menos semanalmente. É deixar. Apesar dos pequenos desacatos que possa causar, a garantia de uma ressaca em que toda a culpa do seu estado miserável recai sobre ele como um piano de cauda é absolutamente desejável. A culpa gera vergonha e a vergonha gera obediência. A longo prazo, o pobre é até capaz de se convencer de que é responsável pelo mundo que habita. Um pobre convertido a esta ideia é de uma lealdade incorruptível. É este o pobre desejável.
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Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.