O poder aos olhos de Michel Foucault
Michel Foucault é um dos nomes mais pronunciados da filosofia e do pensamento sociológico e político do século XX. Apesar de viver somente 58 anos, desenvolveu um trabalho influente numa redescoberta da história à imagem das estruturas de poder, especialmente políticas e sociais. Aliás, foi o conceito de poder no qual orbitou todo o pensamento e o trabalho do francês, que usou para potenciar o próprio movimento do maio de 1968. Um olhar crítico, tão necessário após as duas grandes guerras mundiais, e que não prescindiu de todas as outras perspetivas que se iam criando até então.
Aspetos da sua vida e obra
Michel Foucault nasceu a 15 de outubro de 1926 na cidade de Poitiers, no seio de uma família associada à classe média-alta. A sua incompreensão começou a ser sentida desde cedo, tendo uma relação tensa com o seu pai, que o viria a depreciar regularmente, a acusá-lo de loucura e até a interná-lo, quando já tinha 22 anos. Foi um período difícil, que coincidiu com a sua entrada na universidade, na École Normale Superiore de Paris. No entanto, foi aqui que encontrou a sua estabilidade, por influência dos filósofos que lá estudavam e lecionavam, como Louis Althusser, encontrando o seu gosto pela área e formando-se poucos anos depois. Seria este pensador que contribuiria, ao lado de Foucault, para a formalização do pós-estruturalismo, em que o sujeito de estudo se construía ideologicamente, desvelando-se através da interpelação. Essa ideologia procurava, a seu ver, a glorificação do sujeito idealizado e da sua dimensão intangível.
Após alguns anos a exercer as funções de diplomacia cultural fora do seu país, regressa para lançar “Histoire de la folie à l’âge classique”, já nos anos 60, debruçando-se sobre a loucura naquela que seria a sua futura tese de doutoramento na Sorbonne. Vai da Idade Média até ao século XVIII no estudo de como a cultura, o direito, a política e a medicina viam a loucura; e marca uma viragem na abordagem de Foucault à filosofia. Inicialmente fenomenologista, isto é, centrado no estudo dos fenómenos da experiência e da consciência, deriva para uma nova postura que foi surgindo nesse século XX: o estruturalismo. As relações do ser humano com as estruturas sociais, políticas, culturais e jurisdicionais torna-se no cerne do seu estudo e da sua filosofia; e é a sua evolução que, a seus olhos, pauta o endoidecimento no ser humano, mesmo aos olhares da alteridade, ou seja, da perceção do doido como “o outro”. É aqui que são abordadas as experiências-limite, que se encontram no extremo da intensidade, numa improbabilidade tal que testa os limites da realidade tangível.
Outra obra que é datada da década de 60 é “Les mots et les choses: Une archéologie des sciences humaines” (1966), onde procura averiguar as origens das ciências humanas, centrando as suas atenções para a vida, o trabalho e o idioma – correspondem à biologia, à economia e à linguística, respetivamente. Após discutir sobre a pintura “Las Meninas”, de Diego Velázquez, a sua argumentação apresenta, como tese, que todos os períodos da história tiveram subjacente uma série de ideias epistemológicas que determinavam o que era aceitável. Eram ideias que moviam o discurso científico e que o levaram a transformar-se de período em período; e que ficaram conhecidas como a episteme. Por outras palavras, simboliza a condição da possibilidade desse discurso se exprimir numa dada época, apesar de várias poderem coexistir (possibilidade somente levantada anos depois pelo autor); e estabelece o que pode ou não ser considerado como científico.
É um percurso que Foucault percorre ao lado da antropologia e da arqueologia, que não o deixam desprevenido quando começa a lecionar, inicialmente em Túnis, na atual Tunísia, no final dos anos 60. Em 1968, ano da crítica greve estudantil, regressa e embrenha-se no movimento esquerdista que aí se foi construindo; embora alinhado com as estruturas formativas da universidade, ao chefiar o departamento de filosofia de uma academia experimental, a Paris VIII. Dois anos volvidos, em 1970, seria indigitado para dar aulas no Collège de France até ao dia da sua morte, a 25 de junho de 1984, com 57 anos. Seria em Paris que viria a morrer, sendo vítima do vírus HIV e de problemas neurológicos com os quais se vinha a deparar. O seu companheiro de então, Daniel Defert, viria a homenageá-lo com a criação de uma fundação, a AIDES, de luta contra a sida e a hepatite viral.
No entanto, nem toda a polémica que enfrentou estava cingido ao campo filosófico e sociológico, já que, para além de um pensamento disruptivo e provocador, era, de facto chocante. Isso comprovou-se, por exemplo, na discussão da loi de la pudeur, no âmbito de uma reforma no Código Penal francês feita em 1975. Num debate que se seguiu entre vários intelectuais franceses, Foucault era um dos defensores da descriminalização das relações consentidas entre adultos e menores com menos de quinze anos, já que era um acérrimo opositor daquilo que considerava como o pudor na sociedade. Aliás, esta ideia faria parte de uma petição, que seria assinada por vários desses intelectuais, ideia sustentada com o facto de que se constituiria uma sociedade de perigos, dividindo a população entre os vulneráveis e os perigosos. Isto, igualmente, faria com que a criança se tornasse desconsiderada naquilo que toca à sua capacidade de explicação de eventuais relações, para além da (in)capacidade de dar o seu consentimento para a formação desses laços.
Apesar de uma vida efémera, as causas, as ideias e as obras foram-se avolumando enquanto vivia e pugnava pelos direitos humanos e por uma reforma penal. É um discurso que se vê espelhado na obra “Surveiller et punir: Naissance de la prison” (1975), onde faz uma análise histórica, à imagem do percurso que assume nos seu demais trabalhos, sobre os mecanismos sociopolíticos que se encarregaram das alterações do sistema penal no Ocidente. Para este trabalho, o filósofo debruçou-se nos arquivos nacionais e nas bibliotecas de Paris, percebendo a evolução da própria realidade da prisão como uma estrutura alinhada com as penas impostas. É a constante necessidade de impor disciplina que vai constituindo as prisões como os meios de detenção dos criminosos, assim como regula o seu comportamento e controla os seus impulsos. Compara, assim, esta dimensão com o que, paulatinamente, se foi impondo nas escolas, nos hospitais e nos quartéis militares.
Uma outra causa da sua vida foi a sexualidade. Assumidamente homossexual, Foucault deparou-se com os problemas habituais que uma sociedade conservadora impõe: a discriminação pela sua orientação sexual e a condenação social dos seus desejos e das suas atrações. “L’Histoire de la sexualité”, estudo composto por quatro volumes, dos quais o último foi lançado somente em 2018, procura, através do pensamento do pensador, analisar o surgimento do conceito de sexualidade na sociedade. No papel de objeto discursivo e de uma esfera paralela ao do normal quotidiano social, Foucault argumenta que se trata de algo ainda muito recente aos olhos das sociedades ocidentais.
O primeiro volume, datado de 1976, critica a teoria de que a sexualidade se tornou suprimida com a emergência da sociedade burguesa e do capitalismo até ao século XX, contrapondo com a ideia de que o discurso sobre a sexualidade até se tornou mais comum, assim como o seu estudo aos olhos da ciência no século XIX. Tornou-se num encorajamento para verbalizar sobre este aspeto da vida humana, com o século XVIII a trazerem o mundo da perversão, isto é, a sexualidade das crianças, dos delinquentes, dos criminosos e dos homossexuais. Os dois volumes seguintes, ambos escritos em 1984, abordam o prazer e o sexo aos olhos dos filósofos gregos e dos autores romanos, num tratamento que também inclui a estética aos olhos dos imperadores. Por sua vez, o último deles, contra a vontade de Foucault de lançar obras postumamente, estuda o papel da carne no cristianismo, na tríade corpo-prazer-desejo.
Foucault como filósofo
Michel Foucault é, assim, alguém que se dedica ao estudo das estruturas e das problemáticas sociais, naquilo que eram as relações de poder subjacentes às suas expressões; por entre as estruturas de poder significantes e os significados que estas abrigavam (as visibilités). A subjetividade individual também se tornou numa permanente nos seus estudos, aos olhos de uma identidade formada pela vida e que o horizonte da morte ajuda a desenhar, embora condicionada pela disciplina e pelo próprio poder. No entanto, não se declara um estruturalista, vendo-se como alguém que gostava de desconstruir a modernidade e os conceitos do saber, do poder e do sujeito. Uma modernidade que continuava a tratar os marginalizados e outros grupos de grandes proporções da sociedade, como as próprias crianças, com a desconfiança que os levava a restringir em instituições dedicadas ao seu confinamento entre limites seguros. Delinquentes, detidos e até os soldados e as crianças tornavam-se, assim, os visados neste tratamento impositivo e restritivo, que levou a que se levantassem as já mencionadas questões sobre o sistema penal e penitenciário em França.
É a loucura, a prisão e a psiquiatria que viajam com Foucault neste caminho que coloca em questão o tempo e o espaço, sendo transversais aos séculos antecessores ao atual e também este, que sempre viram indivíduos deslocados da sociedade e colocados em instituições, em segurança. É um estudo que examina a humanidade e a sua história, que percebe até onde vai o presente e até onde chega a liberdade, gerida pelas relações de poder existentes, que se estabelecem entre o singular e a instituição, que conduz à já referida subjetificação das relações (a transformação de um indivíduo era entendida como o ethopoien, advinda do conceito ethos, relativo aos modos de comportamento de uma sociedade). O saber é, desta feita, um caminho trilhado com uma relação direta com o poder, sendo o primeiro causa e o segundo efeito. São os processos e as ligações entre o saber e o poder que constituem o conhecimento e que são conduzidas pelos sistemas subjacentes a ambos os organismos. Através daqui, constituem-se os meios e mecanismos institucionais, administrativos e materiais para o reforço e a conservação desse poder (dispositif), dando forma ao apparatus do poder, ou seja, ao sistema de relações de poder.
É o conhecimento que, por sua vez, constituem as formações discursivas que regem os órgãos de poder, desencadeando os discursos que Foucault procura identificar e refutar. É uma defesa empenhada da verdade, refutando o seu caráter absoluto, e da sociedade, para lá dos preconceitos no seio de quem exerce o poder, que conduz a sua filosofia a uma presença crítica, para lá de historiográfica. É uma presença que procura perceber as ramificações desse poder, alcançando a atuação política, produção económica, a saúde e a já escrutinada sexualidade. É nesse sentido que Foucault procura encontrar os caminhos que levam à verdade, chegando à conclusão da existência de um “regime de verdade”, que procura isolá-la do livre-arbítrio de cada indivíduo e colocá-la numa esfera intangível e inatingível. É um regime que, a seu ver, advém dos sistemas que foram criados pelas civilizações greco-romanas e pelo subsequente cristianismo.
A subjetividade é observada através da formação e da ocupação dos limites da sociedade, onde se situam aqueles que Foucault considera resultado de uma concretização histórica. Entre os desviantes e os demais marginalizados, existem as diferentes subjetividades, correspondentes a cada indivíduo, contrastantes ao discurso uniformizado e normativo do poder. Abrem-se novas perspetivas por entre os cidadãos livres, entre aqueles que, em si, formam veículos de poder de menor proporção (micropoder), fruto das delegações do poder principal. O caminho da libertação dos seres humanos (discursivamente representado pela parrhesia, em que, sem o recurso à manipulação e à retórica, se abordam opiniões e ideias individuais) é, assim, uma prioridade para Foucault, catapultado pela problemática do desejo e pelos objetos de controlo. Um controlo que era, assim, visto na forma do panótico – modelo de prisão pensado por Jeremy Bentham em que todos os prisioneiros eram vistos a partir de uma torre central e se distribuíam pelas redondezas – como fruto da evolução da sociedade, nas relações de poder que a dominam.
As análises que vai fazendo são de caráter indutivo, centrando-se naqueles que estão nas margens do habitual sistema sociopolítico. É um enfoque que se justifica por serem mais percetíveis a atuação das forças de poder, onde se efetiva a aplicação da lei. A lei molda-se através das necessidades de poder a vários alcances, sendo eles o político, o económico e o cultural. Por mais que se torne delimitado, de forma a que tenha o seu alcance universalizado, é um poder que se desdobra através da sua circulação e do que produz, sendo os discursos capacitados desta chegada e desta atuação histórica. A verdade sustenta os discursos, sendo encaixada, assim sendo, naquilo que é a lei e nas suas repercussões.
Estas proporções só começam a ser seriamente delineadas com, entre o século XVIII e o XIX, a chegada de um código jurídico em torno da sociedade, que define padrões de atuação e que a procura regular, estipulando as penas em caso de incumprimento dessas diretivas. O poder que se constitui com fundamentos biológicos, isto é, o de viver e de morrer, começa, gradualmente, a imiscuir-se na sociedade civil. Os meios de acesso aos cuidados de saúde e de segurança social alinham-se nas estruturas de poder existentes, e, de uma forma indireta, regulam a longevidade e a qualidade de vida dos seus cidadãos.
O conceito de biopoder nasce aqui, perante o surgimento de inúmeros mecanismos que são usados em prol do controlo social já mencionado, que permitem regular, de igual modo, a hereditariedade e doenças de risco. O poder aumenta, assim, as suas proporções até englobar tudo aquilo que concerne a vida humana. No entanto, existem lugares que não obedecem a esta métrica de poder, espaços com várias camadas de significação (ou relações de poder, sendo, por isso, mais complexos), onde pode estar implícita a própria espionagem, que controlam a invisibilidade das partes (ou “do outro”). Este conceito, advindo da geografia humana, é também conhecido por heterotopia. As heterotopias de desvio (ou de isolamento) e as de ilusão (inexistentes) conduzem à criação das utopias, que se materializam como idealizações da forma de viver e de ser sociedade. Numa metáfora apresentada por Foucault, o espelho é a heterotopia na medida em que é o objeto que constrói as relações estabelecidas, enquanto também é a utopia no sentido em que aquilo que é refletido não é o real.
Michel Foucault foi visto como alguém influente nos movimentos pelos direitos humanos e sociais no decurso da segunda metade do século XX. Estendeu-se desde o feminismo até ao movimento anti-psiquiatria, passando por demais teorias éticas e sociais. O estudo das identidades individuais e a centralização do seu pensamento nas comunidades negligenciadas e posicionadas nos extremos da sociedade fomentaram esta sua aproximação ao posicionamento de esquerda de muitos dos herdeiros do maio de 1968. O interesse pela sujeição e pela prática mais expressiva das estruturas de poder mobilizou-o, assim, ao encontro de uma dimensão menos jurídica, mas na qual os discursos de poder se ouviam de igual ou de melhor forma. Tornou-se, assim, na sucessão de Jean-Paul Sartre e de Simone de Beauvoir e na contemporaneidade de Gilles Deleuze e de Jacques Derrida, num desafio ao poder e às suas estruturações e relações.