O Portugal antigo, n’O Movimento das Coisas, de Manuela Serra
Na passada quarta-feira, no âmbito dos Encontros da Imagem que se realizam há vários anos em Braga, houve a oportunidade de assistir a um filme de Manuela Serra — na verdade, o filme de Manuela Serra, que não voltaria a ligar-se ao cinema após a experiência com O Movimento das Coisas. Feito, atribuladamente, por volta de 1978 a 1984, apesar de ter sido projectado no estrangeiro (com prémios, por exemplo, na Alemanha), nunca teve uma verdadeira estreia comercial no nosso país; e em 2020 a Cinemateca operou um restauro das imagens, com distribuição agora a cargo da The Stone and the Plot. Desde o ano passado houve algumas sessões pelo país fora, e fica a nossa recomendação para uma futura oportunidade.
O Movimento das Coisas foi integralmente filmado em Lanheses, uma aldeia em Viana do Castelo, e existe uma intenção documental evidente que perpassa todo o filme. Os gestos da câmera não se intrometem nas paisagens campestres, nem nas cenas de vida familiar; capta-se, com um certo sentido de devoção, rotinas e práticas da comunidade: fazer o pão, lavrar a terra, semear os campos. Algumas das cenas são intercaladas e enriquecidas pela música (experimental, até futurista) de José Mário Branco, e mesmo nos momentos claramente dirigidos pela realizadora resultam apontamentos breves, de terna doçura, como brincadeiras gentis.
Quando o acto da montagem do filme simula a passagem de três dias na vida de todos os intervenientes, sobressai, tenuamente, uma vontade (não necessariamente politicamente carregada) de tecer um comentário ao Portugal do pós-Abril, que se direccionava para a Europa e para a modernidade. Esse discurso materializa-se numa espécie de negação do progresso dos tempos, optando por captar uma realidade que parece alheia a tudo o que ocorria no tecido urbano. Em Lanheses, a vida dita-se pela comunhão com a natureza, cuja presença se nota quotidianamente, com servidão aos elementos e às estações; e é assim que ainda se vive, hoje, num certo Portugal rural, que está ainda alheio, envelhecido, e tristemente desaparecido, certamente discrepante da louca Lisboa turística-tecnológica-empreendedora.
Percebe-se, na leitura de entrevistas à realizadora, parte do processo que ceifou a estreia comercial do filme — é também ele retrato de um país retrógrado, machista e misógino. Esses outros tempos privaram Manuela da justíssima projecção do filme em território nacional; por outro lado, vê-lo agora leva a contrastes mais definidos entre as nossas vidas de hoje e as vidas de então. Há uma valência, que justamente se dirá etnográfica, nas cenas que retratam a comunidade no tratamento do milho, rematadas pelo vinho, pelo pão, pelos cantares e pela dança — que será de tudo isto em cinquenta anos, quando tudo o que disso nos sobrar for o cinema?
“A minha primeira ideia era contrapor a vida da cidade, Lisboa, com a vida da aldeia. Mas depois percebi que era muito para mim, porque se tratava do meu primeiro filme. Ainda pensei em fazer primeiro a aldeia e depois a cidade. Em dois trabalhos. Era uma fuga aos valores da cidade. Era perceptível a degradação. O egoísmo começava a nascer. Hoje está evidente: cada um por si. Os valores da solidariedade começavam a desaparecer”.
Manuela Serra, em entrevista ao Público, 18 de Junho de 2021.
O Movimento das Coisas é belíssimo, tanto nos pequenos gestos que magicamente se revelam à câmera (a conversa familiar à mesa de jantar!), como num fiel retrato de Lanheses da altura, que se estende não só aos portugueses rurais, como a uma certa forma de vida — que se perderá, inevitavelmente. Ocorreu-nos a associação ao cinema de Jonas Mekas, em particular Reminiscences of a Journey to Lithuania (1972), pela evidente semelhança na temática campestre; mas há uma outra rima que surge nesta edição do filme, à qual Manuela justapõe uma cena final que, parece-nos, não chegou a ser distribuída nas primeiras projecções do filme: um plano de um complexo fabril, dissonante dos campos circundantes, exalando colunas de fumo acinzentado. Recorda-nos Antonioni e o seu Il Deserto Rosso (1964), a quem tudo isto preocupava, mas que não filmou Lanheses assim, tão gentilmente. Este filme é património rico — vejam-no, quando puderem.