O potencial geopolítico do TikTok

por Cronista convidado,    12 Agosto, 2020
O potencial geopolítico do TikTok
Imagem de Visuals / Unsplash

TikTok, a aplicação de partilha de curtos vídeos musicais exiguamente coreografados, pequenos sketches de humor, e lipsync à Lagardère dispensa apresentações. Esta nova plataforma, que nos presenteia com entretenimento ad infinitum, cresceu exponencialmente durante o confinamento, em particular entre adolescentes e jovens. Com a criatividade dos mais novos vieram também as intermináveis repetições dos mesmos trechos sonoros, responsáveis por dores de cabeça indesejadas e graves convulsões no seio dos agregados familiares.

Contudo, as dores de cabeça não chegaram somente para progenitores que inocentemente carregam o fardo de terem perfilhado uma e-girl ou um e-boy talentoso. As enxaquecas provocadas pelo TikTok atingiram agora os mais altos decisores políticos a cargo das relações entre as duas maiores potências mundiais.

Como um dos primogénitos da geração Z, a responsável incontestável por este cataclisma da geopolítica contemporânea, senti-me obrigado a pronunciar-me.

Yiming Zhang, fundador da empresa ByteDance, detentora do TikTok, encarna na perfeição tudo o que os EUA desejavam que a China se tornasse após a sua abertura à economia de mercado no último quartel do século transato.

Nascido em 1983 na pequena cidade de Longyan, localizada na província de Fujian, no sudeste do país, Zhang é um dos filhos das reformas económicas de Deng Xiaoping, conhecidas como a “segunda revolução”. A par de outras regiões voltadas para o Pacífico, Fujian foi uma das primeiras províncias a iniciar a sua abertura ao mundo, criando alguns dos seus primeiros beneficiários.

Como bom seguidor involuntário do “sonho americano” para a China, o pai de Zhang juntou poupanças para investir na grande reabertura da bolsa de Shanghai, e adquiriu para a sua família um computador que comportava o famoso sistema operativo Windows 3.1. Foi graças a este que Zhang deu os seus primeiros passos na programação.

A Microsoft tornou-se desde cedo uma das grandes impulsionadoras da “liberalização chinesa”, mantendo relações sólidas de cordialidade com Pequim. Ao proporcionar emprego para talentos emergentes no ramo da tecnologia (como o próprio Zhang), assim como software para 90% dos computadores chineses, a gigante americana alcançou um estatuto favorável junto do Partido Comunista Chinês que outros “campeões” da Big Data não podem sequer almejar. Grandes nomes como o Facebook ou a Google não podem operar na China, e a sua ausência está bem colmatada por empresas chinesas como a Tencent ou a Baidu. Já a Microsoft, cuja presença está bem cimentada, mantem-se insubstituível até à data, sem que haja alternativa à vista.

Depois de ter concluído os estudos e de uma passagem por um motor de busca dedicado a viagens, Zhang ingressou na Microsoft, mas cedo se apercebeu de que não fora feito para se tornar numa das engrenagens de uma grande corporação. Mal conseguiu obter financiamento para o seu novo projeto, fundou a ByteDance em 2012, transformando o seu apartamento em Pequim numa incubadora de aplicações inovadoras para dispositivos móveis.

Se substituíssemos tal cenário por uma garagem nos subúrbios de São Francisco, Califórnia, esta seria uma história que já ouvimos vezes sem conta.

Em 2017 nascia o TikTok, com o objetivo de proporcionar ao cidadão médio ferramentas para facilitar a criação de vídeos originais. A princípio a popularidade cingiu-se muito ao mercado asiático. Foi só em 2018, quando a ByteDance adquiriu a aplicação chinesa de lipsync Musical.ly, já com uma boa base de utilizadores nos EUA, que a dimensão internacional deste novo fenómeno começou a ganhar forma.

Dois anos e 2 mil milhões de downloads à escala global depois encontramos o incómodo sucesso que presenciamos atualmente.

No passado dia 31 de julho, o Presidente Trump comunicou a possibilidade de banir por completo a atividade do TikTok nos Estados Unidos através de uma ordem executiva, caso as operações da empresa em solo americano não sejam vendidas até 15 de setembro, evocando motivos de segurança nacional. Entretanto, a Microsoft já se posicionou como principal candidata à compra. As reações não demoraram a surgir, tanto da parte de famosos TikTokers, como de fãs exasperados.

A Administração americana teme que o Governo de Pequim possa, através da app, censurar conteúdos, emitir propaganda favorável ao regime chinês, e, principalmente, adquirir dados sobre milhões de cidadãos americanos, monitorizando-os.

É difícil considerar que tais receios estejam completamente desprovidos de legitimidade. Afinal, o cadastro do Partido Comunista Chinês no que diz respeito à colheita e armazenamento de informações acerca dos próprios cidadãos não é o melhor. Desde o aparelho de vigilância montado na província de Xinjiang, apontado maioritariamente à minoria islâmica dos uigures, ao sistema de créditos sociais que tem vindo a ser implementado, e que teve a sua origem e projetos-piloto em empresas privadas como a Alibaba ou a Tencent, passando claro, mais recentemente, pelo intrusivo sistema de controlo dos movimentos da população com objetivo de conter a propagação da Covid- 19.

Contudo, Yiming Zhang está perfeitamente ciente desta reputação, e tem, ao que parece, feito de tudo para que esta não manche a imagem da ByteDance, e, por conseguinte, do TikTok. Desde o início da aplicação que Zhang demonstrou sagacidade para contornar os perigos de uma associação a Pequim. O TikTok em si nunca operou na China (Zhang sempre o viu como uma plataforma internacional), tendo a ByteDance criado paralelamente uma app quase idêntica para o mercado chinês, a Douyin. A equipa de gestão dedicada aos EUA foi já completamente deslocada para as terras do Uncle Sam, abrindo diversos escritórios que, segundo assegura a manager da aplicação nos EUA, detêm uma enorme autonomia face ao centro de operações na China. Por fim, Zhang fez ainda questão de contratar para CEO do TikTok Kevin Mayer, antigo executivo de topo da Disney.

Dilemas ligados à segurança nacional originados em empresas do ramo tecnológico não são novidade para Washington. A Huawei, cuja relação com o governo chinês é muito mais promíscua, foi impedida de fornecer infraestrutura de telecomunicações 5G nos EUA, sendo já olhada com desconfiança por países europeus.

No entanto, há diferenças fundamentais que distinguem a Huawei de uma empresa como a ByteDance. A Huawei foi um dos grandes motores da revolução tecnológica na China, é empregadora de uma legião de trabalhadores, e detém uma posição estratégica tanto em termos internacionais como para a economia interna que legitima o regime atual. Enquanto que a ByteDance está por detrás de programas de partilha de conteúdos, desde vídeos a notícias, que apenas dão trabalho adicional aos censores chineses. Para além disso, ao conferir à Huawei o papel de elaborar as suas redes de telecomunicações, os estados ficam vinculados a uma relação económica com a China por um período de tempo indeterminado. Já as tendências cibernéticas, nomeadamente as que dependem do gosto volátil de indivíduos pré-pubescentes, assentam em ciclos mais ou menos curtos.

O certo é que longe vão os tempos em que a China podia ser tida em conta como um potencial parceiro. A velha política de integração na ordem internacional liberal através da liberdade económica foi descartada e denunciada como ambição naif dos tempos do “fim da História”.

Existem, portanto, três desfechos possíveis para a questão do TikTok, e que, por mais peculiar que pareça, nos podem dar pistas para o futuro da rivalidade sistémica sino-americana. Nomeadamente, pelo surgimento de uma nova “guerra tecnológica”.

O primeiro cenário consiste na interdição ao uso do TikTok nos Estados Unidos, devido à incapacidade por parte de corporações americanas de chegarem a um acordo para a compra das operações da plataforma chinesa nos EUA. Este desfecho traduzir-se-ia num reforço da posição de dureza e pouca transigência de Trump nas relações com a China, em concordância com o que tem defendido ao longo do mandato. Haverá, certamente, uma parte considerável do seu eleitorado que receberá de bom agrado esta forma mais agressiva de lidar com a potência desafiante. Inclusivamente, foi sob um programa assente no protecionismo nacionalista e isolacionismo internacional que Trump conquistou um sólido apoio entre os “perdedores da globalização”, e uma interdição deste tipo para com uma potencial arma do maior rival externo vai de encontro com o referido ideário. Por outro lado, eventuais indecisos, tidos como eleitores decisivos, poderão ver com maus olhos o facto de terem sido privados do seu meio predileto para assistir a vídeos de gatinhos engraçados.

Já o segundo cenário passaria muito provavelmente pela aquisição das operações americanas do TikTok pela Microsoft. O prazo é curto e a gigante tecnológica tem de ter em conta hipotéticas pressões da administração Trump, avanços de outros possíveis compradores, e ainda as esperadas ameaças vindas de Pequim. As consequências desta solução serão, talvez, as mais favoráveis para o presidente americano, visto que esta resolve as ameaças à segurança nacional impostas pela app, satisfazendo o seu eleitorado base de que receia interferências externas, enquanto simultaneamente evita uma maré de indignação pela interdição do acesso ao TikTok.

No entanto, olhando para ambos os cenários através do prisma da Política Externa encontramos as suas principais deficiências. É certo que em ambos os desfechos, a China retaliará, contribuindo para a nova guerra tecnológica, complementar às atuais disputas comerciais. O porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros do país acusou já os Estados Unidos de abusos de poder com vista a abater empresas não-americanas, prática diametralmente oposta aos princípios de abertura, transparência e não-discriminação estabelecidos pela Organização Mundial de Comércio. Em concreto, a resposta de Pequim pode vir sob a forma da aquisição das operações da Apple no seu território, ou pela exclusão da mesma no acesso às fábricas e mão de obra chinesas. Uma retirada do acordo “fase um”, que amenizou as tensões comerciais entre as potências, assinado no início do ano, não serviria como retaliação adequada, dado que Trump já fez questão de mencionar que, devido à pandemia, deixava de estar vinculado ao que fora acordado.

Por último, o terceiro cenário a ter em consideração, ainda que o mais improvável, trata-se da manutenção, pelo menos até às eleições presidenciais, do status quo respeitante à atividade do TikTok nos EUA. Yiming Zhang tentou já de tudo para melhorar a imagem da ByteDance e deitar por terra quaisquer suspeitas de intimidade entre o TikTok e o Partido Comunista Chinês, mas o esforço tem-se revelado improfícuo. Razão pela qual este cenário dificilmente ocorrerá, apesar de toda a inconstância que tem caracterizado a presidência de Trump.

Independentemente do desenlace, temos de nos consciencializar de que a Política Externa deve assentar num equilíbrio entre poder e legitimidade. Não há dúvidas que os EUA detêm uma vantagem inigualável em parâmetros de poder, mas no que toca à legitimidade, esta administração tem feito de tudo para a dizimar.

As ferramentas que a internet aberta e o mundo globalizado proporcionam à expansão do soft power das democracias ocidentais já demonstraram, precisamente com Trump, possuir um lado perverso. Se descurarmos por completo a legitimidade interna sobrante, temo que, à medida que as tensões escalam e que nos encaminhamos cada vez mais rumo a um novo confronto entre superpotências, sejam os jovens do mundo-livre a surripiar as suas trends ao mundo autoritário.

Crónica de Francisco Sousa Nunes
O Francisco é estudante de licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais na NOVA-FCSH

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