O prazer do texto

por Frederico Lourenço,    6 Agosto, 2020
O prazer do texto
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Ocorre-me muitas vezes pensar, quando recordo a minha licenciatura na Faculdade de Letras de Lisboa, que afinal houve grandes lições aprendidas de professores que, na altura, me pareciam não ter nada para ensinar. Um dos momentos mais marcantes dos quatro anos em que fui estudante aconteceu logo no meu primeiro ano, numa cadeira que nem era de Estudos Clássicos: foi a resposta que recebi quando, no final de uma aula, pedi bibliografia sobre Almeida Garrett; e a indicação recebida, para minha total estupefacção, foi «Le plaisir du texte» de Roland Barthes. Pensei que tinha havido algum equívoco e insisti na minha vontade de ler bibliografia específica sobre a vida e obra de Garrett. E ouvi então esta frase demolidora: «ah… portanto você acha que a vida de Garrett interessa alguma coisa para a obra de Garrett».

Obedientemente, comprei «Le plaisir du texte», que li (e detestei), sem perceber onde estava a chave para a leitura das «Viagens na Minha Terra». Falei depois com a docente responsável da cadeira e confessei-lhe que não tinha encontrado uma única linha de leitura útil para Garrett no livro recomendado. Mais uma vez, veio uma resposta que me deu que pensar: «a ideia é você focar-se no texto de Garrett».

O que ao princípio me pareceu contra-intuitivo – mas então a obra de um autor não é indissociável da vida do autor? – depressa me fez sentido. Como ex-estudante de música, já tinha tido a experiência de procurar em vão «a explicação» para a obra de Mozart na biografia de Mozart. Apaixonado por Wagner, tinha passado uma semana desapaixonado depois de ter lido uma biografia do meu ídolo. Chopin, ao que parecia, fora um pãozinho sem sal; Beethoven, o maior porcalhão de Viena, que cheirava mal à légua (como Michelangelo, de resto). Richard Strauss, autor de música interessantíssima, tinha sido um homem profundamente desinteressante; e não recomendo a ninguém que goste de Mahler a leitura das cartas que nos mostram a personalidade mesquinha e oportunista do genial compositor da «Canção da Terra». Porque é que haveria de ser diferente com o autor das «Viagens na Minha Terra»?

E aprendi aos poucos a focar-me no texto.

O que, como estudioso de autores gregos e latinos, é muitas vezes a única abordagem possível, já que pouco ou nada sabemos de fidedigno sobre a vida dos grandes autores da Antiguidade.

Catulo, no entanto, é um caso especial. Na poesia de Catulo, a ilusão de estarmos a ler textos confessionais e autobiográficos é tão forte que temos mesmo de fazer um esforço para nos focarmos no texto como realidade independente. Mas muitos latinistas, ainda hoje, não conseguem. Muitos continuam presos à ideia de que os poemas em que Catulo fala de uma mulher chamada Lésbia são textos «reais», porque Lésbia seria o nome dado por Catulo a uma mulher real com quem ele teria mantido um relacionamento real, naturalmente cheio de situações reais, fielmente retratadas e descritas pelo poeta nos seus poemas.

No entanto: a colectânea que nos chegou com poemas de Catulo tem 116 poemas, mas o nome de Lésbia só ocorre em 13 desses 116 poemas. Temos, portanto, 103 poemas dos quais Lésbia está ausente. Para os latinistas românticos que gostam de ver na obra de Catulo o registo da paixão avassaladora de um homem obcecado por uma mulher, esses 103 poemas constituem um problema. Alguns deles falam de uma namorada («puella»), mas sem especificar o nome dela. Claro que a maior parte dos latinistas identifica essa «puella» com Lésbia. Só que, se aplicarmos também a chave biográfica à leitura dos poemas que não falam de Lésbia, somos colocados perante uma situação incómoda.

Porquê? Porque a imagem que Catulo projecta do seu «eu» enquanto amante de Lésbia é a de um homem que está completamente preso nas garras de uma mulher que ele adora com paixão abjecta, mulher essa que faz dele gato-sapato e é namorada de muitos outros homens. Na leitura biográfica, o comportamento escandaloso de Lésbia traz sofrimento real a Catulo. Por isso ele escreve um poema (o famoso «Miser Catulle», n.º 8) em que se dá conta da situação impossível em que se encontra; e escreve um dos mais extraordinários poemas da língua latina, onde reconhece que a paixão por ele sentida é uma doença (poema n.º 76); e escreve aquele poema esmagador, constituído por apenas dois versos (n.º 85), em que ele fala da dor excruciante de amar alguém que ele odeia.

Estes três poemas – entre os mais famosos poemas de amor em latim – têm em comum o facto de não mencionarem Lésbia. Então como é que podemos saber que são poemas sobre o relacionamento de «Catulo» com «Lésbia»? No universo fechado dos poemas dedicados a Lésbia, o «eu» é um homem dedicado e fiel ao seu único amor. No universo dos poemas em que não ocorre o nome de Lésbia, a situação é bem diferente. Se ela é uma galdéria, galdério é ele também. No poema n.º 32, o poeta fala de «nove fodas contínuas» (em latim «nouem continuās futūtatiōnēs») com uma mulher identificada com o nome de «Ipsitilla». Outros poemas são dedicados a um namorado do poeta, um rapaz chamado Juvêncio. Outros, ainda, falam de um namorado sem nome, em relação ao qual o poeta receia galderices com outros homens.

A imagem de Catulo como trapo nas mãos de Lésbia acaba por esvair-se se lermos os 116 poemas com o mesmo intuito biográfico com que muitos latinistas interpretam os poemas sobre os milhares de beijos trocados com Lésbia (poemas n.º 5 e n.º 7). E os trezentos mil beijos dados a Juvêncio no poema n.º 48? Já passou o tempo da saída hipócrita de dizer que os beijos heterossexuais de Catulo são biográficos, mas os homossexuais são ficção. E passou também o tempo das edições de Catulo como a de Fordyce (Oxford, 1961), à qual faltam 37 dos 116 poemas do nosso autor. Claro que, para Fordyce, no poema n.º 8 «the utter simplicity of the words… is a guarantee of their sincerity. Lesbia has turned away from him and he is in despair…» (p. 110).

Só que o poema n.º 8 não menciona Lésbia.

Mas esse nem é, a meu ver, o problema mais bicudo que a obra de Catulo nos coloca no que diz respeito à separação entre a vida do autor e a sua obra. Somos livres de pensar que tudo o que Catulo escreve sobre a sua variada e bissexual vida erótica é verdade ou ficção. Ele deu trezentos mil beijos a Juvêncio? Consegui a proeza das nove «futūtatiōnēs» contínuas com Ipsitila? Para mim é indiferente. Já não me é indiferente o caso do poema n.º 101, uma elegia escrita sobre a morte do irmão. Porque é que Catulo escreveria este poema se não tinha um irmão? E se tinha um irmão, porque é que teria escrito o poema se o irmão não tivesse morrido? Pessoalmente, acho que o veronês Gaio Valério Catulo teve um irmão, que morreu. E esse é o assunto real do poema n.º 101.

Em Fevereiro de 1988 comprei a minha primeira edição de Catulo (custou 6 libras!), que continua a ser um dos livros que leio e rabisco com mais prazer e fascínio. Eu estava já no 4.º ano da licenciatura e se, por um lado, já tinha caído a ficha relativamente à questão problemática da biografia dos autores, por outro também me incomodava a questão do poema sobre a morte do irmão. Ainda hoje é o poema que me coloca perguntas às quais não sei responder. E não acredito que a solução esteja no livro de Roland Barthes, o tal que supostamente me abriria a porta à compreensão de Garrett…

Mas dou razão a Barthes no que toca ao prazer. Porque o texto de Catulo (garanto-vos) proporciona o grau superlativo do prazer.

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