O presépio e a cruz
O quadro quatrocentista do veneziano Andrea Mantegna, que vêem na imagem, insere-se numa moda pictórica que marcou a sua época: a de representar o Menino Jesus com um elemento qualquer no quadro a evocar ou a simbolizar a cruz. Parece claro que Mantegna nos quer sugerir aqui a árvore que dará mais tarde a madeira para a cruz em que Cristo morrerá. O pintor não nos quer deixar ver o presépio sem nos dar a ver, ao mesmo tempo, a cruz. Como se o nascimento de Jesus não pudesse fazer sentido independentemente da sua crucificação.
A indispensabilidade da cruz no imaginário cristão corresponde a uma obsessão de São Paulo que viria a marcar 2000 anos de cristianismo: nas suas próprias palavras, Paulo não sabia falar de outra coisa que não de «Cristo Jesus – e este, crucificado» (1 Coríntios 2:2).
Se dispuséssemos apenas dos textos de Paulo para sabermos quem foi Jesus, na verdade nada saberíamos sobre ele a não ser que foi crucificado e que ressuscitou. O Jesus que existe para Paulo é apenas o Jesus que existiu entre a sexta-feira santa e o domingo da ressurreição. Paulo nada nos diz sobre a mensagem em si de Jesus: todo o manancial precioso de dizeres atribuídos a Jesus nos Evangelhos canónicos e apócrifos está ausente de Paulo. Coisas a que o cristianismo posterior dará tanta importância (desde Maria, que Paulo nunca menciona, aos milagres de Jesus, que Paulo ignora) estão completamente ausentes da escrita do homem que inaugurou a teologia cristã. Paulo só quer saber que Jesus foi pregado na cruz e que ressusscitou.
O cristianismo fundado por Paulo é uma religião que se desmorona, de facto, sem a cruz e sem a ressurreição. No entanto, houve inicialmente cristãos que não acreditavam na literalidade da ressurreição, como se depreende pelas palavras de Paulo quando ele escreve aos cristãos de Corinto «se é anunciado que Cristo ressuscitou dos mortos, como dizem alguns de vós que não existe ressurreição dos mortos? Se Cristo não ressuscitou, vazio é o nosso anúncio e vazia é também a vossa fé» (1 Coríntios 15:12-14).
Para Paulo, a morte de Jesus constitui a expiação necessária para aquilo que mais tarde viria a chamar-se o «pecado original» (noção teológica sobretudo desenvolvida a partir de Agostinho em finais do século IV, com base num famoso erro na tradução latina de Romanos 5:12, frase já de si confusa e gramaticalmente defeituosa em grego; remeto para a minha nota a essa passagem, no Volume II da minha tradução da Bíblia).
Numa frase que escapa ao pensamento racional, Paulo afirma que Jesus foi feito pecado por Deus «por nossa causa, para que nos tornássemos justiça de Deus nele» (2 Coríntios 5:1). O que Paulo está a afirmar é um paradoxo. Claro que, no campo da teologia, podemos falar aqui num «mistério»; mas a frase é um atentado à razão. No seu comentário de 2005 ao texto grego da 2.ª Carta aos Coríntios, M. Harris afirma que «de uma maneira sem paralelo no Novo Testamento, este versículo convida-nos a pisar chão sagrado. Nunca devemos esquecer o mistério inerente ao facto de ter sido Deus que fez com que Seu Filho Imaculado se tornasse pecado e, por conseguinte, objecto da Sua ira».
Este Jesus como objecto da ira de Deus, seu Pai, que Paulo nos dá a ver é o Cristo da cruz. Ter-se-ia o próprio Jesus reconhecido nesta representação que Paulo faz dele? Os evangelistas variam no seu grau de explicitude em relação a este ponto. Na Última Ceia narrada por Marcos, Jesus diz do vinho dado a beber no cálice aos seus discípulos que é «o meu sangue da aliança, derramado por MUITOS» (Marcos 14:24). Em Lucas, Jesus diz daquilo que está no cálice que é «o meu sangue, derramado por VÓS» (Lucas 22:20).
Só em Mateus (26:28), considerado por muitos estudiosos o mais recente dos sinópticos, é que Jesus afirma tratar-se de sangue «derramado por muitos para libertação dos pecados». A ideia condiz com o teológico Quarto Evangelho e com a imagem que nele aparece (ausente de Marcos, Mateus e Lucas) do «cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo» (João 1:29).
O cristianismo precisou de dar sentido a uma morte tão ignóbil como era a crucificação no mundo antigo, fazendo do sangue derramado na cruz o cumprimento definitivo da necessidade de sacrifício de um ser vivo, que vinha da tradição judaica e fazia parte de todas as religiões antigas. Como se diz na Carta aos Hebreus (9:22), «sem efusão de sangue não há perdão». Algo tem de sangrar para Deus ficar contente.
Felizmente, Lucas e Mateus permitiram que o cristianismo não fosse só a religião da cruz; permitiram que fosse também a religião do presépio. Como já frisei noutra postagem, o cerne da mensagem do presépio é «paz» e «boa vontade». Por outras palavras, é uma mensagem que tem mais a ver com tornar este mundo melhor do que com justificações teológicas sobre o que tem de sangrar para ilibar o mundo de um pecado que o mundo, se calhar, não cometeu.
Voltando ao quadro de Mantegna: além do Menino Jesus deitado junto da Virgem e da árvore evocativa da cruz, vemos os pobres com as suas roupas esfarrapadas (e rostos carimbados de fome) a adorar o Menino. Será que eles precisam que Jesus lhes traga teologia – ou um mundo melhor?