O Principezinho

por Leonardo Cruz,    1 Outubro, 2022
O Principezinho

Uma frase do Principezinho fez-me recuar no tempo.

— O meu pai será Rei, é melhor teres cuidadinho!

Peço desculpa pela tradução livre, mas o meu inglês é um bocado sarcástico. Falo do pequeno Príncipe George, filho do Príncipe William, por sua vez primogénito de Carlos III (ou como dizem na Irlanda “Charles The Turd”), “novo” monarca do Reino Unido, Chefe da Commonwealth, Líder da Casa de Windsor entre outros títulos tais como, dizem as más línguas, Tampax wannabe.

O traquinas George terá dirigido aquelas palavras a um coleguinha de escola após uma briga. Apesar dos críticos, que logo se apressaram a culpar o garoto, a educação que os pais lhe deram, a hipocrisia e snobismo da família real britânica, de todas as monarquias e dos milionários em geral, apesar de tudo isso consigo entender o miúdo. Se o meu pai tivesse tido a mínima chance de alcançar a posição de soberano fosse do que fosse, não haveria miúdo da minha creche que me chateasse, que não o soubesse logo. Tentei fazê-lo com profissões imaginadas de muito menor interesse na hierarquia social, como “patrão dos bombeiros”, “lorde da polícia militar” ou, ainda, “responsável administrativo por todos os xerifes”.

E aquela expressão levou-me a outros tempos.

Lembro-me bem do dia em que o Joãozinho se virou para mim e disse:

— Não jogas nada, nem rematar à baliza sabes!

— Mas a bola é minha, eu é que a comprei! Por isso tenho lugar na equipa — respondi sem demoras.

Joãozinho, 5 anos de ruindade, não se ficou:

— A bola pode ser tua, mas o teu avô era caixeiro-viajante!

— Head of Sales! Head of Sales! — gritei, já nervoso.

— És um coxo a jogar à bola! Coxo! Coxo! Coxo!

— Isso, além de mentira, é body shaming.

Um coro de vozes fininhas começou a gritar em uníssono a palavra “coxo”. E eu não consegui impedir as lágrimas — não que me orgulhe disso, mas naquela altura eu era um pouco mais sensível do que sou hoje. Chamei a professora, mas ninguém apareceu. O som dos gritos foi crescendo de intensidade, ecoando na minha cabeça de tal forma que me impedia qualquer discernimento. Num acesso de raiva, reagi, dirigindo-me ao Joãozinho com tudo.

Foram precisos três para me agarrar, o Joca, o Toninho e o Vladimir. E olhem que o Vladimir era grandote. Joãozinho não pareceu importar-se.

— Não me podes fazer mal, o meu pai é Chefe — Joãozinho mentia com todos os dentinhos que ainda não lhe tinham caído. 

Eu conheço o pai dele, ainda há pouco tempo o havia encontrado no Pingo Doce.

— Só se for dos desempregados! — disse-lhe de forma arrogante — Infelizmente, quero eu dizer, coitado… — acrescentei, que fui educado a não fazer pouco da miséria.

Joãozinho começou a chorar, e eu não tive outra solução que não fosse conter-me.

— Queres a bola, Joãozinho? Vai trabalhar para ela!

Foi nesta altura que chegou a professora. Perante este cenário, ameaçou-me com queixas ao Conselho Diretivo. Não aceitou as minhas explicações, nem tampouco quis saber quando lhe disse que todas as crianças me haviam acusado de deficiência física nos pés. Imperfeitos para a prática de futebol ou não, o certo é que nunca mais os coloquei ali.

Despedi-me naquele momento com uma citação de Saint-Exupéry que lhe atirei à cara com desdém:

— Sabe o que lhe digo, senhora professora? Aqueles que passam por vós, não dão nós, não nos deixam pós. Levam um pouco de sim, deixam pouco para nós!

Fico agora a pensar se não me terei baralhado nas palavras, mas o raio da frase também não é propriamente a coisa mais expedita. Saí e não mais voltei. Estou há quinze dias à procura de novo emprego. Porém, não me sinto derrotado: estou menos sensível, ganhei resiliência nestas duas semanas. Agora, trabalhar em Creches? Nunca mais!

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