O problema é maior que Ronaldo e Neymar
Não sei se o Neymar ou o Ronaldo são culpados. A não ser pela curiosidade do questionamento dos seus mitos mediáticos, isso pouco me deve importar. Interessa-me, sim, a Justiça. Esperar que sejam inocentados ou condenados à luz dos factos.
De forma justa. Choca-me, porém, a resposta social ao tipo de relatos de ambos os casos. De forma similar, as duas mulheres descrevem um envolvimento consentido até a um determinado momento, a partir do qual, ignorando a sua vontade, a outra pessoa se força sexualmente. Isto constitui uma agressão. Uma violação da liberdade, dignidade e vontade. Se alguém define uma fronteira para a sua intimidade, essa não deve ser trespassada. Não importa o que veio antes se o caminho acaba ali. A eventual expectativa da outra parte tem de morrer na decisão individual.
Choca-me, por isso, o tratamento noticioso destes casos e a forma condenatória como a sociedade encara estas mulheres. E não nos enganemos: tal tratamento pernicioso ocorre porque as acusadoras são mulheres. Primeiro, os media sexualizam a vítima. Escolhem para títulos descrições explícitas de atos sexuais, fazem galerias de imagens sensuais das vítimas (indescritível!) e compactuam com a proliferação de imagens íntimas, sejam elas conversas ou fotografias privadas. Os media aliam-se, assim, ao discurso de defesa do eventual agressor. A vítima é subtraída da sua individualidade, objetificada e construída como um símbolo de aproveitamento do estatuto alheio. Por si só, a sua queixa é desvalorizada. Esta mulher, por ter expressado fascínio sexual ou por ter mesmo concretizado o envolvimento com alguém mediaticamente proeminente, é atirada para o campo da culpabilização. O repugnante “ela já sabia ao que ia”. Isto é uma despersonalização violentíssima porque a eventual vítima vê-lhe negada, à partida, a possibilidade de formular uma acusação. O que se propõe é uma mercantilização do seu corpo. A partir do momento em que ela se demonstrou disponível, tem de aceitar tudo. A sua vontade não é mais sua. Trata-se de uma mera propriedade. Aqui, entra o meu segundo ponto. Esta agressão social só visa as mulheres. Toda esta argumentação denota uma visão da mulher como mera receptora de atos sexuais. O homem não é julgado pelos limites da sua intimidade ao contrário da mulher que é ridicularizada precisamente por ter definido limites para a sua. A mulher, segundo esta visão, deve saber que se começa um envolvimento tem de estar preparada para os limites do homem. Ou seja, é-lhe negada a hipótese de um sexo consensual e comunicativo. Impõe-se um mecanismo opressor na intimidade sexual. Podem achar verborreia feminista (coisa de que me orgulho muito de ser) mas atentem como ambos os pontos se interligam. O discurso condenatório facilmente identificado em caixas de comentários ou colunas de opinião reflete-se no tratamento mediático altamente leviano e descrebilizador da condição feminina neste tipo de situações. E sinto, de forma muito sincera, que condenar o oportunismo ou apontar para uma eventual má noite de sexo são pequenas mutações desta linha de pensamento. Mau sexo, e falo com propriedade neste campo, é sempre consensual. Desilusão não é violação. Já o chapéu do oportunismo deve tratar-se como uma condenação moral. Devemos condenar as pessoas que se aproximam de outras por falsas motivações. Sejam de que género forem.
Contudo, porque fazemos deste um adjetivo quase exclusivamente feminino? Porque as mulheres não são postas no mesmo patamar sexual do homem. O sexo é visto como uma armadilha para as suas presas. Daí que quando as coisas correm mal, as mulheres, ao invés de vítimas, são tratadas como um predador que foi apanhado na sua própria caça. É a visão desigual da condição sexual profundamente enraizada. Chega disto. Bora sair das cavernas.