O problema não são os imigrantes, mas a forma como são vistos

por Cronista convidado,    4 Maio, 2021
O problema não são os imigrantes, mas a forma como são vistos
Fotografia de Daniel Krueger / Unsplash
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Portugal, muitas vezes, é caracterizado por ser um país hospitaleiro, humanista, que recebe os imigrantes de braços abertos, garantindo direitos e boas condições de vida. Sabemos que esta é mais uma daquelas ideias que de ser tão repetida leva-nos a interiorizar que seja verdade, quase como aquela ideia de identidade nacional homogénea. 

Porém, nos últimos dias, temos vindo a assistir ao contrário e de uma forma bastante violenta — afinal, o nosso pequeno país ainda tem um longo caminho a percorrer, no que concerne à consolidação do respeito pelos direitos humanos. Recentemente, fomos confrontados com a realidade migratória que se vive no concelho de Odemira, no Alentejo. Este tem se revelado um caso singular no âmbito da migração laboral, porque apesar de ser um concelho constituído, maioritariamente, por população envelhecida, de se localizar numa região periférica do país e ter dificuldade em encontrar mecanismos de fixação de população jovem, tem vindo a atrair, na última década, milhares de imigrantes laborais de origens diversificadas. Sabe-se que um quarto da população residente é constituído por cidadãos estrangeiros e que existe um leque diverso de nacionalidades, nomeadamente asiáticos e búlgaros, que sustentam o trabalho agrícola especializado deste concelho, alimentado por um sistema de redes de trabalho imigrante, que tem vindo a perpetuar-se e a acentuar-se, devido à procura de mão-de-obra por parte de empresas frutícolas, hortícolas e florícolas. 

Até aqui, parece estar tudo certo: as empresas sediadas em Odemira necessitam de mão-de-obra e esta é sustentada pelo recrutamento de imigrantes, que procuram melhores salários. No entanto, por trás desta lógica de oferta e procura, existe um cenário de precariedade, exploração, crise habitacional e violação dos direitos humanos — cenário este que dura há vários anos, mas que só agora é que foi colocado no centro do debate público. 

De repente, foi necessário que viesse uma pandemia para destapar o véu a uma situação que, apesar de ter sido denunciada pelas entidades locais, jornalistas, investigadores e ativistas, foi ignorada. O número de contágios entre estas comunidades de imigrantes subiu substancialmente e percebeu-se que isso seria um problema que agravaria as tensões entre os locais e os imigrantes, afetaria o lucro das empresas e seria um risco para a saúde pública. 

O governo, no meio do caos, apressou-se a constatar e a proceder às requisições civis para alojar as pessoas infetadas, sem assumir ou atribuir qualquer responsabilidade relativamente a todos os motivos que desencadearam a impossibilidade de controlar a propagação do vírus naquela zona — ausência de fiscalização às empresas e falta de habitação digna para os trabalhadores. A dimensão do problema complexifica-se, aquando da existência de um universo de intermediários no recrutamento destes trabalhadores imigrantes, que se materializam entre agências de recrutamento e de prestações de serviços, que fomentam a exploração destes grupos, deixando-os, muitas vezes, à mercê da sua própria sorte. Será a agricultura intensiva o novo fosso da escravatura moderna? Talvez devêssemos deixar a resposta para os órgãos competentes, como a Polícia Judiciária. Porém, enquanto sociedade, temos o dever moral de usar a nossa voz para exigirmos integração e direitos para estas pessoas que, para além de executarem o trabalho que nós, portugueses, não queremos, contribuem para a sustentabilidade da nossa economia e que, acima de tudo, são pessoas! O problema nunca serão os imigrantes, mas a forma como estes são vistos — como capital humano e máquinas de fazer dinheiro, o lucro em detrimento da dignidade humana. Esta lógica abre caminhos para a violação dos direitos básicos e temos aqui a prova, mesmo no nosso quintal…

Crónica de Margarida Agostinho
A Margarida é alentejana e estuda em Lisboa para se licenciar em Relações Internacionais. Neste momento, concluiu o primeiro ano do mestrado em Migrações, na Universidade Nova de Lisboa e está a desenvolver a sua tese de investigação, em que o tema é: “A migração laboral em Odemira — o desafio da integração”. 

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