O professor morreu, viva o professor!
O senhor está vivo? Foi a última das coisas que ouviu antes de estar morto. Sentiu a ironia, era a ironia que lhe fazia ascender a alma. Não era a primeira vez que lhe diziam estar morto, ultrapassado, apático, e tinha-se preparado muito bem com as famosas respostas de mau feitio. Meu caro jovem, sabe que Nietzsche disse isso de Deus, só para ter a desfaçatez de, depois de morto, ouvir Deus dizer-lhe, eu bem te disse! Desta vez, não respondeu com nenhuma. Não podia e, em ascensão, viu tudo exactamente como tinha imaginado. Ascendia lentamente e por baixo dele num zoom out cinematográfico, o mundo ia encolhendo e ele ascendendo.
Lá em baixo, no mundo, o Professor estava morto e tudo o resto, conhecido como reanimação cardio-respiratória, já não o envolveu a ele. Foi declarado morto logo ali, e era agora apenas um corpo. Colocado dentro da ambulância ninguém diria quem ali ia. Um homem caucasiano, para lá da meia idade mas ainda não suficientemente idoso, aparentava ser alguém com familiares próximos e isso era o mais importante no relatório de óbito. Logo por baixo do onde estava escrita a causa de morte, o paramédico escreveu: contactar familiares próximos. Ninguém o tinha identificado na rua do atropelamento e, nos bolsos, apenas uma nota muito amarrotada onde estava o que parecia ser uma soma de nove números.
O jovem paramédico depois de passar o corpo ao médico legista, também jovem naquela função, sentou-se na secretária para teclar o conjunto de números. Estava exausto, quase no fim de um turno de nove horas, ainda pensou comer a sua merecida refeição trazida de casa, no habitual recipiente de plástico, mas era melhor terminar já ali as suas obrigações, que logo após comer entraria no princípio da sua folga semanal. Pegou no telefone e marcou nove, dois, três, quatro, quatro, quatro, sete, cinco, seis. Atenderam logo. Era o número da portaria da escola de teatro, de facto, a casa do Professor. Não foi preciso muito para o paramédico colocar uma cruz ao lado do contacto. Estava iniciado o processo e ele podia finalmente ir para casa.
No dia seguinte, o jovem estava de folga e não precisava de continuar a ser paramédico. Tinha medo de se cruzar com uma qualquer situação inesperada de socorro médico e por isso preferia ter as folgas o mais solitárias possível. Desligava-se de tudo o que acontecia à sua volta. Televisão não tinha e o seu telemóvel ainda era dos que só serviam para telefonemas, por isso aquela quarta-feira passou-se como o dia mais tranquilo da história da humanidade. Ainda a caminho do Instituto de Medicina Legal, já no dia seguinte, reparou que havia nas ruas do centro da cidade um número de pessoas anormalmente grande. Por entre a multidão e já para lá da porta de entrada, reparou que seguranças e colegas comentavam os jornais. Estava em todos os títulos: MORREU O MELHOR DE NÓS!
E foi assim, inesperadamente, em corpo, que o Professor de Teatro ganhou a maior das famas. Um total desconhecido em vida, foi na morte que encontrou a sua fama. Moribundo em vida, florescia agora na morte com o maior dos impactos. Era uma constante que o teria surpreendido. Afinal, a sua reputação precedia-o e não havia alma que não publicasse uma fotografia consigo ao lado, uma petição instantânea, em que se sugeria alterar o nome da escola para o seu nome. Uma comissão de estudo para catalogar e publicar os seus arquivos de notas desorganizadas. Um leilão das suas mobílias e pertences, disputado entre vários coleccionadores. E uma enormidade de entrevistas a ex-alunos, colegas e funcionários, que evoluíam a alta velocidade para a transcrição em teses de doutoramento sobre os métodos pedagógicos do Professor. O melhor de nós tinha morrido e as homenagens tinham nascido.
Grandes discursos foram proferidos, mas havia um que estava a incendiar a opinião pública. Um famoso político tinha tornado sua a missão pedagógica do professor, propondo que: como mártir do ensino, fosse dele a cátedra de estudos nacionais no estrangeiro; que a escola de teatro lhe fosse oferecida em memória; e que todos os que o ignoraram ou insultaram fossem considerados proscritos pelo mundo académico e pior, pelo mundo das artes. Manifestações, cargas policiais e cartazes inspirados, inundaram a cidade e o país, havendo mesmo aqueles que propunham uma rápida beatificação do homem e o embalsamento do corpo. Queriam prestar homenagens eternas ao Professor que tanto sofrera por eles. Queriam dizer-lhe finalmente que estavam prontos para as suas lições. Mas, respostas nenhumas, o Professor mantinha-se como a natureza tinha decidido mantê-lo, morto.
Ele não podia ver nem responder, mas os outros faziam isso por ele, com a maior das eficácias. As pequenas frases ocasionais ditas num corredor, ou os excertos de conversas de avaliação com os alunos, tornaram-se factos relevantes. Já não era preciso o Professor responder, os outros faziam isso por si. Tivesse dito ou não, concordasse ou não com o que agora era dito, tudo era indiferente porque pela primeira vez, e na morte, o Professor de Teatro tinha razão, sempre. No topo dos acontecimentos a frase escrita, emocional e sem censura, na porta do WC dos homens: O PROFESSOR MORREU, VIVA O PROFESSOR!