O público é quem mais ordena
O que têm em comum Game of Thrones, Robert Pattinson e Sonic, The Hedgehog? Milhares de fãs enraivecidos. A propósito desta ira, vale a pena refletirmos sobre o poder que temos enquanto público e como isso pode ser destrutivo para todos os artistas enquanto criadores.
À data desta crónica, contam-se perto de 1 milhão de assinaturas para que a última temporada de Game of Thrones seja reescrita. O promotor, um rapaz chamado Dylan, assume que tem ideias, mas não uma solução para o “problema” que foi a sua desilusão com o final desta série. Como é de esperar, por mais assinaturas que angarie, é praticamente impossível (e inconcebível) que a HBO ceda a esta pressão. O que torna todo este aparato numa cena ridícula e inútil, que muitos alinham por brincadeira, mas que demonstra um lado singular do público, o de intervir nas opções criativas. Porque, no fundo, é disso que se trata: colocar em causa as opções criativas que os escritores, produtores, todos os envolvidos tomam enquanto criadores de entretenimento cultural. Esse risco sempre foi assumido por parte de quem cria e é precisamente isso que dá o estatuto de obras de arte ou de falhanços aos olhos de quem consume. Mas faz parte do processo criativo e da relação entre artista e público. É a surpresa, o risco envolvido que dá uma certa magia ao que consumimos. Mas o que está a acontecer, num crescendo assustador, é que o grande público vê-se no direito de intervir, influenciar e dissimular o que consume, em nome de uma vontade pessoal, de uma estética que acha adequada para aquela obra, ao abrigo de petições como estas.
O caso mais recente foi o do anúncio de Robert Pattinson como novo Batman. O rumor veio de uma revista prestigiada norte-americana e não foi confirmado pela Warner Bros., mas em menos de 24 horas, já surgia uma petição para retirar o ator do projeto porque os fãs (de quê, de quem, não se sabe muito bem) não concordavam com a escolha. Uma petição baseada num rumor, num facto não consumado, parece-me mais um exemplo da inutilidade da exerção do nosso poder. Em última análise, uma perda de tempo. É certo que algumas produtoras, ao sentir o pulso das suas supostas futuras audiências, cedem à pressão para mudar as coisas. E é aqui que entra o Sonic, The Hedgehog, filme com estreia marcada para novembro deste ano.
No lançamento do trailer, o backlash em relação à aparência física da personagem foi tão forte que o realizador Jeff Fowler veio a público dizer que ia mudar o design. Tudo baseado nuns meros 2 minutos e meio de vídeo. Resta saber se as mudanças são do agrado de toda a gente ou se haverá uma petição contra aqueles que pediram essa mudança. Porque o perigo de mexer em opções criativas é que o está na cabeça de uma pessoa não é o mesmo que está na outra. E quando todos alegam que a maioria quer mudar, a imagem, a história que cada um idealiza é diferente. Ou seja, não existe uma vontade una no mundo inteiro. Não é por acaso que a expressão “não se consegue agradar a gregos e troianos” existe. Vivemos tempos estranhos no mundo do entretenimento (particularmente no cinema), onde parece que o público é quem mais ordena. Chegaremos, talvez, a um tempo onde uma produtora de cinema faz um pitch ao “grande público” e é este que vai decidindo tudo, um género de crowdfunding criativo para chegar a algo consensual, verdadeiro, genuíno, que vá mesmo ao encontro do que todos querem. Esperem, já aconteceu, um filme chamado “Snakes on a plane”. Se se lembram do filme, está tudo dito.
Crónica de Miguel Peres
Miguel Peres é um rapaz baixinho e criativo com várias vidas: trabalha em comunicação, é copywriter freelancer e argumentista de banda desenhada. É um apaixonado pela sua mulher, por cinema, comida e BD. Tem 2 livros publicados, diversas curtas publicadas em antologias internacionais, um selo editorial chamado Bicho.