O que tens para mim?
No filme “Pânico em Florida Beach”, realizado por Joe Dante, Lawrence Woolsey (interpretado pelo actor John Goodman) explica, de uma forma muito sucinta, o que é a magia do cinema: quando uma pessoa chega à sala, com o bilhete à espera de ser rasgado pelo funcionário, já é tarde para voltar atrás, regressar à realidade e a todos os problemas. Apenas resta entrar na “cave” dos sonhos e pesadelos contínuos e deixar-se levar pela escuridão e a torrente de imagens que nela será projectada. É como se quem vai ao cinema dissesse para o ecrã, com a mais alegre das submissões, antes das luzes se apagarem: “Aqui estou eu! O que tens para mim?”.
Desengane-se quem pense que só hoje é que o cinema luta pela sobrevivência: na época em que o filme se passa (anos 60, entre a paranóia da guerra fria e a crise muito próxima dos mísseis de Cuba), a sala da pequena cidade já tinha de se reinventar para continuar a obter lucros: não passa só filmes, como também emissões televisivas e outros entretenimentos menos “apropriados”. Os próprios filmes de Woolsey são mais do que isso: são experiências vivas em que conta tanto o que se passa no ecrã como as mil e uma surpresas que o realizador-empreendedor arquitecta ao longo da sessão.
O cinema teve, desde muito cedo, de fazer frente a outras concorrências. Mas a sua evolução fez-se através dessas lutas: creio que nenhuma outra arte tenha feito tanta da sua História num tão curtíssimo espaço de tempo. No seu primeiro século de existência o cinema começou mudo, depois veio o som, o esplendoroso technicolor, e os formatos de ecrã largo, e as linguagens revolucionárias das “novas vagas”, e o digital, e outras coisas numa catadupa de fulgurantes acontecimentos, fazendo desta uma arte à medida do veloz século XX. A cada nova invenção, outras ficaram para trás e, com o passar dos tempos, parece que são cada vez mais desprezadas. Muitos olham hoje para o passado do cinema com um certo desconforto. Há quem, por exemplo, não consiga ver “filmes a preto e branco” como se isso fosse todo um género cinematográfico.
Mas nem precisamos de ir tão longe no tempo. A certa altura de um episódio do seu podcast, Joe Rogan conversa com o humorista Bill Maher sobre cinema, afirmando ter tentado ver o filme “Le Mans” (de 1971), e que não conseguiu aguentar a lentidão… mais surpreendido fiquei quando Maher atira algumas informações sobre Hitchcock (várias erradas) e afirma ter tentado ver a segunda versão de “O Homem Que Sabia Demais” e ter sentido a mesma coisa… e estamos a falar de duas produções hollywoodescas populares que em nada devem ao mais alternativo e difícil slow cinema.
Qual é, então, a grande concorrência do cinema em 2020? A internet mas, acima de tudo, a crescente redução da capacidade de concentração de todos nós. Infelizmente, ao contrário de outros “inimigos” da História desta arte, é quase impossível combater estes dois factores… a não ser pela nossa própria cabeça e pela nossa vontade de assimilar mais do que vídeos de um minuto e meio. Parece que há toda uma conspiração da tecnologia para nos fazer afastar dos livros, dos álbuns com faixas maiores do que três minutos e meio, e dos filmes.
Neste ano a situação já debilitada das salas leva um fortíssimo safanão com a chegada da pandemia. Imperam os streamings, os VODs, e uma parafernália de filmes por estrear acabam por aparecer directamente na casa dos “consumidores”, cada vez mais ávidos de “conteúdos”. A Universal diz ter lucrado mais com o lançamento dos seus mais recentes títulos nessas plataformas do que se tivesse esperado pela distribuição dita tradicional. É claro que, em parte, isto deve-se ao momento de isolamento que todos vivemos, e porque os EUA, que tantas vezes parecem ser o único país que conta no mundo, aderiram massivamente a esta oferta.
Durante a quarentena o público não pôde ir ao cinema porque tinha de ficar em casa. E as últimas notícias parecem apontar para o maior dos desastres, o fim há tanto tempo anunciado (e por alguns maliciosamente desejado) do cinema em sala… será que é desta?
Já semanas depois de iniciado o desconfinamento, quando algumas salas recomeçam a sua actividade, são revelados os primeiros números: as cadeias comerciais têm pouquíssimos espectadores por dependerem de filmes novos que foram adiados pelas distribuidoras, mas o circuito independente volta a ganhar, aos poucos, o nicho fiel que, com ou sem medo de vírus, gosta sempre de ir ao cinema.
Dizia que o cinema está sempre a levar bofetadas e a pandemia parece ter sido a mais forte de todas. E, como tantas vezes no passado, leio as mais delirantes profecias – que o cinema vai acabar, que vamos todos ficar em casa sedados com netflix e disney para todo o sempre, e que o grande ecrã não conta para nada. Mas gostava de acreditar que as pessoas não se esqueceram totalmente do que é ir ao cinema, e que só deixaram de ir por causa da pandemia, ou porque entretanto perderam o hábito e/ou a capacidade financeira para o fazer. Não falo só dos cinéfilos ou dos habitués da Cinemateca, mas de quem gosta de, numa ocasião ou outra, ir ver um filme com amigos numa sala qualquer. Já imaginaram se o próximo filme do 007 estreasse só em casa? Seria um pouco estranho, não? Não é a mesma coisa…
E isto pode ser um problema de primeiro mundo… corrijo: é-o, de facto. E tendo em conta todas as tragédias que têm feito correr rios de tinta nestes últimos meses, parece uma falta de respeito estar para aqui a falar disto. Mas deixem-me levantar do pedestal pseudo-burguês onde me encontro e pedir para, no meio do caos, ficarmos ainda com o cinema. Acredito mesmo que, se o perdermos, perdemos também uma parte de nós.
E talvez o/a leitor/a já se tenha apercebido que, por vezes, pode até não ter gostado tanto de um filme visto no ambiente doméstico, opinião que muda radicalmente se revisitar o mesmo filme no cinema. Aconteceu-me, por exemplo, com “O Amigo Americano”, de Wim Wenders: vê-lo no quarto, em pleno dia, com algumas pausas pelo meio provocadas por telefonemas e numa televisão analógica mais pequena do que o ecrã do computador onde escrevo estas linhas, levou-me a não apreciar tanto o filme como quando o revi na reposição do Nimas, em que fiquei de queixo caído com as mesmas imagens. Era como se as visse pela primeira vez. O mesmo aconteceu com tantos outros filmes: “2001: Odisseia no Espaço” é uma experiência totalmente diferente quando se tem de controlar o volume da televisão para não acordar a vizinhança. E tornou-se para mim o exemplo fulcral de que, por vezes, podemos prejudicar a nossa relação com os filmes.
Não quero com isto denegrir o cinema visto em casa: tal como toda a gente, a maior parte dos filmes que vejo são nessa condição. Mas não nos podemos esquecer nunca de que a grandiosidade esmaga-nos. Uma televisão, por maior que seja, não fornece o mesmo impacto. Uma grande sala tem um ecrã que nos faz mergulhar nele e só dali sair quando as luzes se voltam a acender. Experimentem ver o “Aconteceu no Oeste” no grande auditório do CCB e depararem-se com uma vintena de metros preenchidos só com Claudia Cardinale!
O contrário também se sucede: durante a quarentena a RTP1 exibiu o filme “A Herdade” em formato minissérie, mas a memória forte da grandeza de o ter visto na sala maior de um multiplex levou-me a não rever mais do que os dez minutos iniciais, para que a pequenez da televisão panorâmica não substituísse essa sensação.
E voltando a Woolsey, no cinema nós estamos a ser subjugados pelo filme. Não nos podemos mexer, não podemos carregar no botão de Pause para ir à casa de banho ou espreitar o que se passa nas redes sociais (pelo menos as pessoas com um mínimo sentido cívico não o fazem numa sala de cinema), nem podemos acabar de ver mais tarde. Somos “obrigados” a estar atentos a cada plano e ao desenrolar da narrativa (ou da falta dela), e aí sentimos, de forma diferente, o que nos fascina e irrita em cada sessão. Ficamos mais envolvidos com a sala e com o que ela nos apresenta. O filme é que manda, não nós. E que boa é essa alegre submissão.
O que mais me incomoda, quando leio os dizeres dos profetas da desgraça, é pensar que se pode perder uma óptima experiência de comunidade. Sim, quantas vezes fui a sessões só com meia dúzia de gatos pingados? Muitas.
Mas rever o “Playtime” do Tati num ecrã grande com uma sala apinhada, em que as gargalhadas são contagiosas e a alegria de estarmos a testemunhar tudo aquilo em conjunto parece emanar na atmosfera, numa fusão de todas as reacções pessoais e mais ou menos transmissíveis, não é o tipo de experiência que podemos dar-nos ao luxo de perder. Qualquer comédia (seja excelente, boa ou mesmo má) ganha sempre qualquer coisa quando é vista com muitas pessoas em simultâneo no mesmo espaço físico. Podemos ter hoje muitas (e boas) maneiras de ver cinema em casa, mas a boa e velha sala escura é insubstituível.
É claro que este parlapiê todo também fica dependente do outro lado: a oferta de filmes nos circuitos mais mainstream tem de ser mais diversificada (que bom é ver as páginas de anúncios de filmes em exibição nos anos 70 e 80 e comparar com o marasmo de indiferença que vemos nos multiplexes actuais… ), e as salas de cinema têm de ser maiores do que aquilo que hoje podemos ter em casa – e tanta gente já consegue ter salinhas de projecção com mais condições do que alguns cinemas minúsculos. Os realizadores contemporâneos, se querem que os seus filmes passem no cinema e sejam mais do que “imagens de TV num ecrã maior”, também têm de trabalhar os filmes pensando na diferença que dá esse modo de ver e sentir as imagens. .
Seria bom, por tudo isto, que não perdêssemos, à escala mundial, a noção da importância do cinema em prol do consumo mais rápido das séries e dos “conteúdos”. Precisamos mesmo de continuar a poder entrar numa sala de cinema, sentarmo-nos à espera do início da sessão e, assim que as luzes se apaguem, clamar pelo ecrã que nos aguarda: “Aqui estou eu! O que tens para mim?”.