O rasta
O rasta. O rasta é uma pessoa simples. O rasta não complica. O rasta tem um amor que lhe arde fortemente no peito, e ele preocupa-se com pouco mais. O amor que ele tem rouba o espaço onde nós, os comuns mortais, temos sentimentos como o ódio ou a inveja. O amor do rasta é tão grande que vai de mim até deus. E se para mim deu é lado nenhum, para o rasta é todo o lugar. Eu, e ele também. Assim, o rasta ama-me, e ama-se, porque não tem como fazer doutra forma.
O rasta tem uma alma de criança, só porque as crianças são a felicidade. Porque ele não é velho, nem é novo, o rasta surfa o tempo com uma alma que, apesar de não cristalizada, desliza bem na alma dos outros todos.
O rasta vivia num quartinho, no Gana, em 2014, quando eu passei por lá. O bairro dele era sujo e pobre e ele não tinha quarto-de-banho. Tinham de ir lá abaixo, e pagar. Mas o bairro dele era, também, belo, de certa forma. Pudera eu decidir, todas aquelas pessoas teriam melhores condições. Mas, não tendo, não creio que me caiba grande culpa por me arriscar a ver a beleza do sítio. O rasta era um rasta, o vizinho do lado era católico, o da frente, que também tinha rastas, era muçulmano, e eu era ateu. E no nosso meio havia um tacho de banku. “O sol já se pôs, posso comer.” Um funeral no bairro do rasta era uma cerimónia na rua que durava dias. “Há quanto tempo morreu?” perguntei, a alguém ao meu lado, enquanto via um grupo de dançarinas a dar o seu espectáculo, enquanto um grupo de dançarinos, atrás, se preparavam para entrar em cena. Sempre ao ritmo de uma banda local à base de precursão. “Foi a semana passada.” O bairro dele era sujo e pobre, mas o Jah Spirit passava na rua e toda a gente dizia “Hey, rasta!” O taxista vinha, dizia que ia só buscar água, desaparecia duas horas, e quando íamos à rua, ele ainda não tinha saído, tinha encontrado alguém. É verdade que íamos para o aeroporto, buscar a Graciete, mas nem sei se me apetece rebeliar-me contra os costumes locais. Não me feriram.
O rasta não tem de pedir para que lhe queiram dar. “Estou a ver se consigo angariar cinquenta euros (em cedis) para mandar aquela miúda para a escola.” Estávamos sentados num Spot, o nome que dão aos cafés de bairro, aqueles com tecto de zinco. Lembro-me do compromisso com o Sam. Encontrar alguém que precise e pagar-lhes a escola ao longo dos anos. Olho para o rasta e já lhe quero dar tudo. Mas eu sou assim, e sei que sou assim, apaixono-me muito facilmente pelas pessoas. Por isso, por saber que sou assim, decido esperar. Mais um dia. E torno-me num espelho que manda o amor para outro lado qualquer. Por causa dele. O rasta convida o amor das pessoas.
O rasta nasceu no Togo e foi para o Gana quando era adolescente. Durante muito tempo vendia coisitas na rua e passava as noites nos carros das pessoas. “Quando via as pessoas a estacionar perguntava se podia passar a noite no carro deles.” “E as pessoas diziam que sim?” “Claro”, responde-me, com leveza.
Fez recados, fez o que lhe apareceu e agora aparecia-me.
“When is the sister coming?” perguntou-me, no dia do taxista tardio. “Which sister?” perguntei, confuso. Era a Graciete. Que ele nunca tinha visto. Foi comigo e a Graciete a Maranatha, uma língua de areia com o mar de um lado e o rio do outro. Estamos sentados numa cadeira de praia levemente desconfortável. “O que é ser rasta?” pergunto ao rasta. “Há rastas que vivem o rastafarianismo como uma religião mesmo, e vêem deus na figura do Haille Selassie. Há outros rastas que se organizam em movimentos contra o domínio dos brancos. Porque muitas vezes os brancos, quando vêm para África não é porque não há nada a ganhar… e depois há pessoas como eu… Tenho respeito pela pessoa que o Selassie foi, mas não o vejo como deus. E não sou contra os brancos, porque sei que somos todos só um. Um amor!” One Love. “Às vezes encontro outros rastas que, por uma razão ou outra, dizem ‘Tu não és rasta!’ e eu digo ‘Okay!’” diz, encolhendo os ombros e levantando as mãos. “Não vou estar a lutar ou debater com alguém para que achem que sou rasta. Para mim ser rasta é vermo-nos todos uns aos outros como irmãos, como uma grande família, unidos por um único amor… é viver em paz e partilhar. E é essa a forma como eu vivo.”