O retrato humano em ‘Dez de Dezembro’, de George Saunders

por Miguel Fernandes Duarte,    26 Junho, 2016
O retrato humano em ‘Dez de Dezembro’, de George Saunders
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Chegamos a este livro com um bom cartão de visita: sete, dos dez contos que figuram em Dez de Dezembro, de George Saunders, foram inicialmente publicados na prestigiada revista The New Yorker (entre 2009 e 2012), antes de serem agrupados nesta colectânea. Publicado originalmente em 2013, nos EUA, chega-nos agora, passados três anos, numa tradução para português de Isabel Castro Silva, com o selo da sua Editora Ítaca.

George Saunders é um tipo invulgar. Mesmo que saibamos de outros tantos exemplos de quem parte da área científica para a literária, não é habitual depararmo-nos com um escritor, com tanta qualidade, que tenha começado por um bacharelato em Engenharia Geofísica e escreva agora contos tão humanos, tão pungentes, quanto os presentes neste Dez de Dezembro. O próprio refere-se a si “como se pusessem um soldador a desenhar vestidos”; e este é um soldador transformado num óptimo estilista, vestidos vistosos não faltam.

Desde logo o primeiro destes que é, juntamente com o último (que dá nome ao livro), provavelmente o conto de maior qualidade nesta obra. Volta da Vitória, assim se chama, é incrível. Não só ficamos completamente embasbacados pela forma como Saunders constrói as três diferentes correntes de consciência (uma para cada uma das personagens), como o ritmo, a acção e os pormenores absolutamente deliciosos, nos deixam loucos. É destes que se constrói a ficção do autor, fortíssimo em, num curto espaço, formar retratos de precisão científica, com os pormenores a revelarem-se preciosos numa construção do discurso perfeitamente adaptada a cada personagem; desde Alison, rapariga de 15 anos que se imagina como se de uma espécie de princesa se tratasse, até ao seu vizinho Kyle, da mesma idade, cuja família o obriga a obedecer a uma série de estranhos hábitos, como um sistema de pontos para premiar (ou castigar) as suas acções ou a colocação de um geode no jardim da sua casa.

Se no primeiro dos contos há uma espécie de adrenalina constante que leva a uma leitura em velocidade furiosa, no último o panorama é inicialmente mais calmo, mas acaba igualmente frenético. Um rapaz, pouco integrado socialmente entre os seus pares, prepara-se para sair para a neve com uma pressão de ar nas mãos para caçar seres por ele próprio inventados. Enquanto caminha junto a um lago gelado, avista um homem idoso, apenas em pijama, desagasalhado no meio dos doze graus centígrados negativos, que se tinha isolado ali para se matar e pôr, de uma vez por todas, fim à sua vida arruinada pelo cancro de que era vítima. Se inicialmente o miúdo olhava para ele como sendo um desses tais seres a quem estaria a dar caça, rapidamente se apercebe tratar-se de um humano em necessidade de salvamento. Focando-se a acção nessa tentativa do rapaz de impedir a morte do homem, é mais uma vez a forma como os diferentes pontos de vista e, consequentemente, a narrativa, estão construídos que torna este num conto estrondoso, um culminar de emoções que, avisamos, pode levar às lágrimas.

Com certos laivos de Kurt Vonnegut, Saunders surpreende pela originalidade das abordagens e pela presença de certas peculiaridades que causam estranheza ao leitor, como num conto onde raparigas provenientes de países sub-desenvolvidos são penduradas em quintais para mostrar o estatuto social, ou noutro onde um homem cumpre pena numa espécie de laboratório de testes, onde é cobaia de fármacos que adulteram desde o seu comportamento sexual à sua habilidade oratória. Mas, centrando-nos nestes dois contos, tais peculiaridades são estéticas em contos onde o foco é, no primeiro destes dois, a luta do narrador para, no meio de graves problemas financeiros, tentar melhorar a vida da sua família e torna-la mais feliz, e, no segundo, uma luta interna para não voltar a cometer o mesmo erro. Torna-se, portanto, importante realçar que tal originalidade, que, sem dúvida, acrescenta novas dinâmicas à narrativa, não é factor essencial para a interpretação do mesmo, o que afasta estes contos de algo como a ficção-científica e os deixa no território da exploração do comportamento humano e das relações interpessoais.

Se esta originalidade provém ou não da cultura científica do autor e da adaptação de um homem a fazer algo para a qual não tem preparação técnica oficial, isso não sabemos. Mas sentimos que estes são contos brutalmente humanos, contos de sacrifício. Mesmo numa sociedade tendencialmente mais egoísta, haverá algo mais humano que isso?

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