O sabor do sável

por Martinho Lucas Pires,    21 Abril, 2025
O sabor do sável
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Estávamos em 2013, com a reação à crise da zona euro no adro. Encontrava-me nessa altura em Bruxelas, mais precisamente na zona de Watermael, quando soube da notícia. Tinha acabado de participar num jogo de futebol, no qual a minha equipa – composta por três italianos, um turco, um belga francófono, e eu – venceu os seus adversários, todos eles belgas flamengos, com um golo no último minuto do jogo. Foi a minha mãe que me disse, por mensagem: temos um novo Papa, e chama-se Francisco. Sorri pelo nome, e pela esperança que ele comporta, procurando imaginar que nova Era seria inaugurada.

“Francisco não abriu tanto a Igreja como dizem, nem a deixou incólume como o acusam. Antes, procurou devolver à estrutura um sinal de humildade e proximidade, escutando os crentes e não-crentes, e respondendo com assertividade aos desafios do tempo. Fez o seu papel, e quem se seguir em S. Pedro terá de continuar com o seu trabalho de exigência.”

O papado de Francisco foi um trabalho na continuidade naquilo que Bento XVI inaugurou: um processo de reflexão relativo ao papel da igreja no mundo contemporâneo. Respostas não faltaram, vindas tanto de fora como de dentro, com diferentes correntes. Como sempre, a opção que acabou por ser assumida está algures num caminho que não dá tanto ao mar, nem tanto à terra. Francisco não abriu tanto a Igreja como dizem, nem a deixou incólume como o acusam. Antes, procurou devolver à estrutura um sinal de humildade e proximidade, escutando os crentes e não-crentes, e respondendo com assertividade aos desafios do tempo. Fez o seu papel, e quem se seguir em S. Pedro terá de continuar com o seu trabalho de exigência.

Não sei que Era se inaugura agora, doze anos depois, com a partida de Francisco. A ironia de ter tido uma audiência com J.D. Vance no dia anterior à sua despedida deste mundo não deve passar incólume ao simbolismo. Não consigo deixar de pensar no artigo de Perry Anderson, publicado numa edição recente da London Review of Books, sobre as mudanças de regime no ocidente – um diagnóstico claro, preciso e cristalino (e com uma certa dose de controvérsia) sobre os tempos conflituosos que vivemos. Encontramo-nos num ponto de inflexão, cujos movimentos e reações terão consequências profundas e, parece-me, pesadas para a nossa forma de viver.

“Promete-se o mundo e o outro, quando o país não tem capacidade para uma coisa nem outra. É uma ficção sobre ficções, e nada demonstra tão bem a situação como o debate sobre as “contas certas”.”

Claro que quem estiver a seguir as eleições em Portugal pode achar que não, que nenhuma transformação está em curso. Encontrar discussões mais tépidas do que as discussões desta campanha é difícil. Promete-se o mundo e o outro, quando o país não tem capacidade para uma coisa nem outra. É uma ficção sobre ficções, e nada demonstra tão bem a situação como o debate sobre as “contas certas”. Não está em causa que o equilíbrio orçamental é um bem, mas esse bem não devia ser necessariamente um fim, sobretudo em períodos de dificuldade. Se até a maior economia da zona euro percebe que agora é importante investir, como é que nós podemos fugir a esse caminho? Infelizmente, não temos nem a força nem a credibilidade da economia alemã, o que torna tudo mais complicado, sobretudo se formos apanhados na curva dentro dos vários movimentos geopolíticos que se estão a formar, sobretudo no comércio internacional.

“Encontramo-nos num ponto de inflexão, cujos movimentos e reações terão consequências profundas e, parece-me, pesadas para a nossa forma de viver.”

Ainda é cedo para ver o efeito das tarifas impostas pelos Estados Unidos às importações dos outros países, mas a ação já teve um efeito importante, que foi afetar as relações entre Estados e obrigar a reorganizações. Economia, política, isto é como diz o cantor, isto anda tudo ligado, e pode ser que a unidade europeia se fortaleça. Mas e as casas, os salários, a saúde? Como fazer a quadratura do círculo de conseguir prosperidade, investimento, equilíbrio financeiro e paz social? Se tememos o radicalismo, podíamos ao menos aceitar as dificuldades, e puxar por soluções assertivas e de impacto, mesmo que a médio-longo prazo. Porque senão, se estamos presos apenas ao ciclo político (e ao circuito de comunicação que o governa), então não vamos lá. Não vamos mesmo lá.

Comi sável na Sexta-Feira Santa e lembrei-me do poema de Ruy Belo sobre Portugal. Em Lisboa, o tempo varia entre chuva e sol, chuva e sol. Aproxima-se o dia da liberdade e a minha cabeça antecipa-se uma semana, procurando, ao celebrar o passado, uma possibilidade de futuro. Falta um mês para as eleições e eu não sei em quem votar.

Sugestões do cronista:

Ando a ler Trabalhos de merda de David Graeber, um trabalho interessante sobre certos tipos de trabalho que se afiguram não só como inúteis, mas também danosos para a vida em sociedade. Vi On Falling de Laura Carreira, e achei que é um filme bem conseguido, embora force, mais do que precisava, a sua mensagem. Ando a viajar pelos campos ingleses com mais uma aventura de Ana Teresa Pereira, das minhas escritoras preferidas, chamada Inverness. Na música, voltei ao Blue Album dos Weezer. Não consigo deixar de ouvir o tema principal de Twin Peaks, de Angelo Badalamenti.

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