O show da guitarra operária de Mansur Brown no CCOP da cidade Invicta
Para começar a Primavera, nada melhor do que um recital de guitarra à boa maneira do jazz londrino contemporâneo. Assim, fomos ao auditório do CCOP (Círculo Católico dos Operários do Porto) assistir ao talento irreverente de Mansur Brown, proveniente de Brixton, subúrbio de Londres sul. Um talento que converge, em si, influências africanas e afroamericanas, nomeadamente do afrobeat, do R&B, para lá do rock e do flamenco, mas também do ambiente eletrónico da capital de Inglaterra, nomeadamente do garage e do dubstep, coisas que lhe chegaram aos ouvidos posteriormente. É desta forma que se identifica como alguém a quem compartimentar se torna um processo difícil, cultivando uma noção de musicalidade ampla e inclusiva. É o que faz com a sua editora, a AMAI (tradução do japonês para “doce”), que corporiza a sua intenção artística e a sua filosofia de criação musical.
Como registos discográficos, deparamo-nos com “Shiroi” (2018, “branco” em japonês), “Heiwa” (2021, “paz”), os singles “NAQI” (2022) e, mais recentemente, com “Desta – The Memories Between” (2023, a banda sonora de um videojogo de dodgeball com o mesmo título). Mais viral, contudo, para além das colaborações com Kamaal Williams em “Snitches Brew” e “LDN Shuffle”, é a magnética performance de “Love is a Message”, ao lado do pianista Alfa Mist, do baterista Yussef Dayes e do baixista Rocco Palladino. Evidência clara de alguém que se dá tão bem em palcos de salas de concertos, como em espaços noturnos, nomeadamente as chamadas boiler rooms, num ambiente mais underground, mais distante das típicas pistas de dança. De igual modo, numa das suas vindas a Portugal, deu-se muito bem no Iminente, na sua edição de 2022, com a sua iminência musical.
Num concerto originalmente escalonado para o fim de novembro passado, o arranque da Primavera foi o enquadramento temporal escolhido pela logística para a guitarra de Mansur fazer das suas. Vindo do Musicbox de Lisboa, acabamos por o encontrar à porta do espaço do evento de passagem e fomos retribuídos por uma simpatia um tanto ou quanto tímida e um grande sorriso. Contudo, um atraso significativo de quase vinte minutos fez-se sentir no início das hostilidades, sendo que a sala, que não encheu, recebeu grande parte dos seus ocupantes para lá da hora escalonada de início, as 21h30. Nota, também, para a (discreta) acessibilidade do espaço que, pese embora a imensa história da instituição que o alberga, não ajuda a que assuma mais centralidade a quem procura um entretenimento noturno em forma de concerto musical. As portas abrirem somente meia hora antes do início do evento também causou algumas dúvidas em quem por lá passava, portas essas que poderiam ser abertas para se mergulhar um pouco na tal história do CCOP, que não dispensa uma apresentação devida.
Fora questões logísticas, importa, contudo, e em especial, abordar aquela que foi uma hora explosiva e magnética de Mansur Brown e companhia, nomeadamente Ezekiel Ajie no baixo e Lox com a bateria. Mesmo que curto, à imagem da dimensão do próprio auditório, ambos conseguiram transcender-se com um trabalho de luzes e uma qualidade de som irrepreensíveis. A execução foi, assim, praticamente perfeita aos olhos e ouvidos das dezenas (talvez centena e meia ou até duas centenas) de espectadores que se deleitaram com a magia da guitarra deste pequeno Hendrix. Não tanto o psicadelismo, mas mais a capacidade de dizer que o jazz pode elevar os decibéis que não fica mal, à boa maneira da alma operária que, no esforço do seu trabalho, se mune de capacidades e de feitos para reivindicar a arte da sua humanidade.
Foi um concerto que, em muito, nos fez lembrar os espetáculos de Alfa Mist ou, no ano passado, de Kamaal Williams no coreto de Matosinhos, ao abrigo do Matosinhos em Jazz. Apesar disso, foi bem melhor fechar as portas e concentrar a emissão de som entre quatro paredes, podendo correr o risco de, em caso de atuar em espaço aberto, fazer dispersá-lo e não o tornar tão compacto e assimilável. De ouvido, reconhecemos “Naqi” – interpretada a solo -, “Heiwa” ou “Touch”, entre várias outras que a hora de concerto conseguiu proporcionar. Mansur saudou regularmente o público e reconheceu o gosto que foi atuar em frente de uma audiência que, não por raras vezes, saudou os artistas e os seus feitos nesta noite. A possibilidade de o admirarmos de pé fez com que o passo de dança fosse coisa comum e até quase permanente, já que, mal os olhos fechavam, os estímulos sonoros se transformavam em movimentos dinâmicos harmonizados com os acordes da guitarra ou do baixo ou com as batidas da percussão.
Uma nota de futuro é o desejo grande de vermos todos estes deslumbrantes talentos em uníssono numa sala ou num espaço em que possam abrir o livros dos seus talentos. Já vimos como correu com alguns deles, nas nossas incursões a Matosinhos, e, agora, garantimos a certeza do quão bom é Mansur Brown. Um guitarrista fluído, operário e profundamente elétr(ón)ico, capaz de fazer do jazz uma onda de choques doces e palpáveis ao ouvido e ao corpo e que o fará pelos vários festivais que tem agendados para o futuro próximo. Com todos estes músicos ainda tão jovens, não é descabido imaginar e desejar que, nem que seja de par em par, nos visitem e nos encantem a dobrar, a triplicar e assim sucessivamente. Enquanto isso não acontece, vamo-nos regalando com as peças e, nas nossas explorações e futuras imaginações, fazendo puzzles deliciosos em musicalidade e em genialidade.