O silêncio constrangedor entre histórias
Entre a proliferação das séries televisivas que assistimos, existe um vazio temporal que vai sendo preenchido com mais séries, de tal forma que seguimos, sem grande problema, 5 ou 6 shows ao mesmo tempo. No entanto, ler 2 livros ao mesmo tempo parece ser uma tarefa herculana para muitos de nós e muitas vezes nem sequer é opção para preencher este fosso entre histórias.
Antes de mais, um dos paradigmas que mudou o consumo foi o facto de nos termos tornado em utilizadores em detrimento de espetadores. A definição de espetador, a meu ver, cinge-se a uma definição mais tradicional, uma atitude passiva no conteúdo que nos passa à frente. Já o utilizador, escolhe o que vê, é parte ativa e influencia a própria indústria de conteúdos porque são as suas decisões que moldam a tendência do que se produz. É dentro deste contexto, desta demanda pelas séries, que o utilizador é bombardeado com conteúdo novo. Há sempre algo que é obrigatório ver, palavra de amigo. E de forma genérica, quando decidimos acompanhar uma nova série, sabemos de antemão que a mesma vai ter pelo menos mais uma temporada. Isto significa duas coisas: que vai existir um hiato de um ano entre temporadas e que, precisamente por isso, a nossa memória terá de guardar a cronologia dos acontecimentos e as características das personagens. Ou seja, existe um investimento considerável de tempo e mental para uma série. Mas entre este hiato, existe um silêncio confrangedor que incomoda.
Porque o silêncio incomoda muita gente.
E para contornar este sentimento de “e agora, o que é vem a seguir enquanto espero?”, investimos noutras séries e vamos acumulando histórias e informação, ficando com uma agenda bem preenchida que dura o ano inteiro. Até chegar outra vez a nossa série favorita. No entanto, todo este aglomerado de conteúdo não parece carecer de grande esforço e agilidade mental e assim o é porque nos é dado sem investimento de outra coisa que temos cá dentro, a imaginação. O prato vem completo para a mesa e só temos de comer. E assim as séries tornam-nos obesos de entretenimento. Não significa que não existam séries que puxem pelo nosso intelecto, porque existem muitos e bons casos. Mas se falarmos do investimento temporal e emocional de um livro, a história é outra.
Ler um livro implica um esforço mental enorme, temos de ter um bom budget interno de imaginação porque ler significa pensar em cenários, imaginar as feições, as vozes e ainda compreender a história e as suas entrelinhas. E portanto, por um lado, compreendo que seja complicado ler dois livros ao mesmo tempo. Mas por outro, se temos a capacidade de encaixotar tantas séries de televisão na cabeça, certamente que a mesma se estende para os livros.
É claro que reconheço que ler, por exemplo, A Guerra e Paz e Cem Anos de Solidão ao mesmo tempo deverá ser uma tarefa quase impraticável. No entanto, conheço pessoas que naturalmente rodam os livros. Porque, tal como nas séries, nem sempre nos apetece ler/ver apenas uma história. O nosso estado de espírito e até a nossa maturidade vai mudando os nossos gostos.
Neste silêncio incómodo podemos ler o livro que deu origem à série e, geralmente, é bem melhor que a adaptação. Porque a nossa imaginação entra na equação e não há efeitos especiais que a substituam.
Crónica de Miguel Peres
Miguel Peres é um rapaz baixinho e criativo com várias vidas: trabalha em comunicação, é copywriter freelancer e argumentista de banda desenhada. É um apaixonado pela sua mulher, por cinema, comida e BD. Tem 2 livros publicados, diversas curtas publicadas em antologias internacionais, um selo editorial chamado Bicho.