O som e a fúria de ‘Mariphasa’
Um filme de emoções e sensações próximo do género de terror.
Depois de Berlim e do IndieLisboa, Mariphasa, a segunda longa metragem de Sandro Aguilar, chega finalmente às nossas salas. Aqui deixamos as nossas primeiras impressões desde que o filme passou pelo festival alemão na secção Fórum que acolhe os projectos mais experimentais da Berlinale.
Foi ainda na ressaca do pesadelo vivido ao descobrir este filme assombrado (e assombroso!) que nos sentámos com o autor de Mariphasa para apaziguar os nossos fantasmas impressos em imagens que demoram a ser apagadas da nossa memória. No fundo, os que habitavam aquele intenso pesadelo sensorial e circular gerado pelas composições meticulosas de António Júlio Duarte, Albano Jerónimo e Isabel Abreu, para além ainda da participação de João Pedro Bénard e Gonçalo Waddington. Todos eles já conhecedores do estilo de Aguilar, talvez com a excepção de João Pedro Bénard.
O mote do filme é logo dado de início – e que explica o seu título enigmático – referindo-se a essa planta mitológica, referida no filme The Warewolf of London, de 1935, encontrada apenas no Tibete e que floresce apenas durante a noite, sendo uma espécie de antídoto para a transformação em lobisomens. Aqui não veremos lobisomens, mas devem andar por ali. De resto, estes elementos acabam por alterar a versão que passou no festival de Vila do Conde, aí ainda sem essa explicação do conceito desta planta fictícia que acorda estes seres – serão eles lobisomens?
O que se segue são pequenos elementos, fragmentos de uma realidade que não está necessariamente escrita, que é inventada nos ‘quadros’ de luz e sombras desenhadas com o cuidado do igualmente assombroso trabalho do director de fotografia Rui Xavier. É nesses quadros que poderemos detectar aparências de imagens de tantos filmes, da série B, ao horror, à acção, ao melodrama. É que quando entramos em Mariphasa é como se fosse num veículo em andamento, um ciclo vicioso, algo que vem de trás, que não nos é explicado, mas que entrevemos. E que sobretudo onde nos deleitamos com a intensidade de cada frame.
Mesmo sem seguir o lado mais enigmático de várias das outras curtas, Aguilar admitiu que é desse território que parte “desses pequenos elementos e une estética e modo de trabalho próprios”. Talvez por isso, este pequeno cast já sabia que não teria ensaios e que o improviso também está excluído do seu trabalho. “A experiência que proponho não é uma experiência narrativa”, adverte. “Ou melhor, é narrativa, mas não para contar em duas linhas.” Até porque, o que pretende “são coisas muito simples, embora os actores não tenham de ter a noção da construção do filme. O que importa é que cada um consiga definir bem o inferno que tem lá dentro.” É isso mesmo que vemos nos olhares injectados de sangue e talvez no ritmo seguramente contagiado pela banda sonora angustiante.
No fundo, tudo é criado no momento. Sem improvisação, mas também sem guião. Ainda que “algumas dicas acabem por ser dadas por actores”. Como sucedeu alguma vezes com a Isabel Abreu “que me ia-me dando elementos, mesmo estando fora de cena, que acabei por integrar. Coisas que ela me foi oferecendo.” Diferente, foi o trabalho do Albano (Jerónimo), pois “gosta de fazer o trabalho de casa, no fundo, a sua introspecção.” Algo que contrasta “com as pulsões fulminantes da Isabel”. Ou então, o rigor das imagens. “Eles têm de saber que estão a trabalhar para o quadro. Por vezes, o Júlia tinha apenas três centímetros de espaço para movimento.” No fundo, servir para aquela luz e aquele plano. Por isso mesmo, o efeito é devastador.
É no espaço fechado de uma unidade industrial (diz-nos depois que se trata da Lisnave) que contactamos com o desespero de um homem que destrói um automóvel com um pé de cabra, ou um homem de caçadeira em punho que maltrata um cão, ou a mulher que reflecte a sua tristeza num brilho que rima com a faca por usar.
“É um terror que lida com o desconhecido, uma ameaça latente que pode ter muitas formas. É tudo aquilo que nós não vemos. Que vem fora de campo.” Sim, uma pulsão animal que já vimos em tantos filmes, mas que nunca nestes quadros.
É claro que um espectador menos disponível poderá distrair-se à procura de significados, da tal narrativa, ou do guião, que Sandro Aguilar já se esqueceu.
“Tenho a fama de fazer os filmes para hostilizar os espectadores, mas não é verdade”, esclarece o realizador de 44 anos, admitindo mesmo que “até penso bastante nos espectadores, embora não numa experiência formatada”. Apesar de se perceber que há muito da estética de curtas neste filme, Aguilar admite ainda que não encara a curta metragem como um “veículo para a longa nem um espaço de experimentação para a longa. Encaro a curta metragem como um espaço de experimentação. Ponto. Mas também não me considero um cineasta de curtas.”
Ao longo de todo dos 86 minutos que dura este pesadelo, vamos mantendo essa insegurança nos actos das personagens, sem sabermos bem o que vai suceder. Até porque para Sandro interessa-lhe “mais essa possibilidade de algo que vai acontecer” e não aquilo que realmente acontece. “No fundo, ao longo do filme estamos a construir as circunstâncias em que ele vai começar.” Essa sensação de limbo é como uma “pescadinha de rabo na boca, em que as personagens estão em pré-suicídio ou a rever as condições da sua permanência no mundo”.
O que dizer então do cinema de Sandro Aguilar? É que Mariphasa foi talvez o filme que mais nos impressionou do ponto de vista da emoção intensa que brota do ecrã – dois tais quadros de imagens em movimento ‘pintados’ pela fotografia impressionante de Rui Xavier e pelo incómodo e pegajoso desenho de som do próprio Aguilar. Por isso mesmo, apetece dizer que este Mariphasa é o verdadeiro cinema do som e da fúria.
Artigo escrito por Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt