O sonho de Al-Rashid
Quando Al-Rashid acordou, percebeu que o sonho da noite anterior se estava a realizar. Os gritos de Allahu Akbar (acudam!) e o cheiro a madeira queimada realizavam o anúncio de fim do mundo com que tinha sido brindado em sonhos. A invasão dos estrangeiros do norte, bárbaros selvagens, estava a acontecer. E pior do que no sonho, em que pelo menos tinha acordado no momento mais violento, ali, à sua frente, estava a acordar para a realização do pior dos massacres, o dos inocentes.
A torto e a direito, sem preocupação pelo que eram, os habitantes da cidade viam chegar a morte, horda atrás de horda, pelo orifício, cada vez maior, das suas muralhas. Não existiam palavras que construíssem perguntas, apenas sons que ajudavam o movimento que as espadeiradas e machadadas faziam abrir caminho até à maior mesquita do Alcazar. Lá, os estrangeiros nem arrombaram portas, derramando apenas piche para cima das paredes e do telhado, fazendo-os arder que nem forno, que assou todos os que, lá dentro, procuravam auxílio e protecção de Alá.
Alá não protegeu ninguém, mais do o Deus cristão protegeu. Protegidos pelos deuses, estavam os que tinham braços, pernas e espadas maiores. Os mais fortes abriam caminho pelos corpos dos mais fracos e ali, no meio da imensidão de cadáveres, do cheiro a morte e coberto das cinzas dos escombros que ardiam um pouco por todo o lado, vi-a. A morte era o maior homem que já tinha visto na vida, com um capacete reluzente que me encandeava, aproximou-se de mim, colocou-me a mão no ombro, e na minha língua disse, Não devias estar aqui. Foge enquanto é tempo! A minha família, não sei onde estão. Não te posso ajudar nisso, foge para sul, lá ainda demoramos a chegar.
Não fugi para sul. Fui levado, junto com os últimos que abandonavam a cidade pela porta sul. Fiquei sem voz de gritar por ela e pelos meus filhos! Viver sem eles era como morrer à mesma. Agarrei-me a todos os vivos e a todos os mortos na esperança de reconhecer a cara, do mais pequeno ao mais velho. E ela, como poderia viver sem ela? Daquele lado da cidade não havia tesouros ou outros objectos com preço para os nossos invasores e isso oferecia-me mais algum tempo. Por ali, seguia-se um longo caminho, desbravado por entre os campos da planura, que agora se apresentava à nossa frente. Embalado pelo movimento amorfo do pequeno grupo, nasceu-me a memória da história do pai do meu bisavô, que tinha atravessado o estreito do mar, sem grande oposição e aqui, no Oeste, tinha sido até aclamado à entrada de cada cidade. Fomos recebidos e agora éramos expulsos, exactamente pela mesma razão. O crente procura a ordem e a ordem é a do mais forte. Assim dizia o Profeta e assim eu acreditava. Mas como iria viver sem ela?
Neste território a oeste que habitamos hoje, já foram muitas as crenças que organizaram a ordem dos que cá viviam. Uma a uma, uma horda substituiu a anterior. Uma a uma, mudou-se a crença, mas não se mudou o povo. O povo foi sempre o mesmo, antes da migração, antes da invasão, antes da conquista, antes da expulsão. Todos somos o resultado do mesmo povo, o que cá viveu sempre. O que foi mudando foi o nome do amo e o nome do Deus, de resto todos somos os mesmos, desde o início. Um pai, uma mãe e um par de filhos foi sempre o mais importante a crer.
Claro que os nossos nomes e as nossas caras foram mudando. As nossas casas, monumentos, livros e peças de roupa foram mudando, mas os nossos corpos são tão neandertais como sapiens, tão celtas como iberos, tão romanos como cartagineses, fenícios, gregos, visigodos, suevos, mouros, africanos, nórdicos ou franceses. Nós somos a mescla que foi mudando de nome, época após época, mas que viveu sempre a mesma procura, a mesma esperança: ver os nossos filhos serem também eles pais. E o mesmo medo: deixá-los à sua sorte, ou pior, ter de viver para lá deles.
Aqui, Al-Rashid acordou ao lado da sua mulher. Uma bomba tinha rebentado no prédio, mesmo ali ao lado da sua casa, e sem saber bem porquê, lembrou-se de ir buscar os filhos que ainda dormiam no quarto ao lado e, todos juntos, agora na mesma cama, faziam-no sentir mais seguro. Se morrermos, pelo menos morremos todos juntos e não ficará cá ninguém para chorar a nossa morte.