O sopro reinventado de Miles Davis

por Lucas Brandão,    12 Outubro, 2020
O sopro reinventado de Miles Davis
Capa do disco “Kind of Blue”, de Miles Davis
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Miles Davis é um dos mais reputados e célebres músicos de jazz do século XX, sendo dos mais influentes, independentemente do instrumento ou até da voz na criação musical do género. Vivendo uma carreira conturbada, não deixou de produzir êxito após êxito, abrindo portas à emergência de nomes que seriam seus colaboradores, como John Coltrane ou Herbie Hancock. Entre quartetos e quintetos, Davis decidiu sair do registo normativo e formal para se empolgar numa fusão do jazz com o funk e com o soul, que conciliou com uma paragem na sua carreira, paragem essa benéfica para a sua notoriedade. Porém, a sua saúde não o faria prolongar-se muito nesta sua vibração mais rítmica, disposta a quebrar preconceitos em toda a linha do e no jazz.

Miles Dewey Davis III nasceu a 26 de maio de 1926, no estado do Illinois, nos Estados Unidos. A sua mãe era professora de música e violinista e, ao lado do seu marido, possuía uma quinta no estado do Arkansas. Porém, Davis viveria, com os pais e os irmãos, no estado do Illinois, em plena Grande Depressão económica, que levou a que o seu pai, dentista, se tornasse obcecado no seu trabalho. Não obstante, Davis frequentou a escola, onde se encantou, desde miúdo, com os blues e com a música gospel, assim como com as grandes bandas de então. Aos nove anos, recebeu o seu primeiro trompete, tendo aprendido a tocá-lo com Elwood Buchanan, o seu primeiro mestre, alguém que o incentivava a procurar os sons a meio, sem grande vibração grave ou aguda. Com o novo trompete que recebeu no seu décimo-terceiro aniversário, começou a atuar com bandas locais, para além de ter aulas com Joseph Gustat, então o trompetista da St. Louis Symphony Orchestra. Na escola secundária, deparou-se com a discriminação racial em competições de música, que o obrigaram a superar-se, de tal forma que procurou aprender música teórica. Assim, continuou a atuar e começou a ser pago para o efeito, dinheiro que usou para pagar as propinas da sua irmã na universidade.

O seu primeiro grande amigo na música seria o também trompetista Clark Terry, que seria seu companheiro em diversos álbuns da sua autoria. Até lá, porém, faria parte de algumas bandas locais, inclusive da Rhumboogie Orchestra, que chegou a liderar. Davis seria pai com a precoce idade de 18 anos, pouco tempo depois de terminar o ensino secundário. Porém, julho de 1944 traria um momento de viragem da sua carreira: uma banda composta pelo baterista Art Blakey, pelo trompetista Dizzy Gillespie e pelo saxofonista Charlie Parker ressentiu-se da baixa de um outro trompetista que fazia parte desse grupo. Davis seria o convidado para o substituir, fazendo-o por duas semanas. Foi o momento que o levou a mudar-se para Nova Iorque, cidade na qual se inscreveu no futuro Juilliard School. Porém, Davis procurava ir a aulas isoladas de piano, de dicção e de teoria musical, abdicando de uma formação académica séria. A sua amizade com os artistas com quem havia colaborado pouco tempo antes ajudou-o a atuar em alguns bares de Harlem, um bairro em que as comunidades afroamericanas predominavam, ao lado de nomes consagrados, como o do pianista Thelonious Monk ou do baterista Kenny Clarke. No ano de 1945, em prol da sua carreira e das suas atuações, abdicou de se matricular na faculdade, que viria a criticar na medida em que se focava na música erudita europeia e num repertório de proveniência caucasiana, apesar de louvar a formação que lhe foi dada.

Em 1945, integraria o quinteto de Charlie Parker, em substituição de Dizzy Gillespie, tendo depois integrado a banda do saxofonista e clarinetista Benny Carter. Na música de Parker “Now’s The Time”, o solo que Davis produziu com o seu trompete anteciparia aquele que seria o seu estilo, mais leve e descontraído do que a trepidação que o jazz, então, entoava e carregava. Depois de Parker ser hospitalizado após um burnout, Davis juntou-se ao lado do baixista Charles Mingus, embora fosse um breve período, intercalado pelo nascimento do segundo filho de Davis, que culminaria, entre outras bandas, na sua primeira reunião de artistas sob a sua liderança. Porém, o vício do álcool e o uso de cocaína aproximavam-se da sua vida e de atormentar a sua carreira, embora não o impedissem de, ao lado de Charlie Parker, do pianista John Lewis e do baixista Nelson Boyd, criar o grupo Miles Davis All Stars, que antecipou os seus quintetos e sextetos. Seria, também, um dos primeiros membros, em 1948, das tournées do Jazz at the Philarmonic, que percorreu o país até aos anos 1980. Conheceria, de igual modo, o baterista Max Roach, o pianista Gil Evans e o saxofonista Gerry Mulligan, com quem partilhava o desagrado de um bebop (o estilo que, então, dominava a produção musical no jazz) que desconcertava o jazz de tal maneira que o tornava excessivamente virtuoso e vibrante. Plantavam-se as sementes de um jazz que se queria melódico, relaxado, aproximado da voz humana, embora somente com o recurso aos instrumentos e à sua improvisação por parte dos seus intérpretes.

Formou-se, desta feita, o Miles Davis Nonet. Nove músicos juntaram-se: sob a liderança do trompete de Miles Davis, estava o trombonista Kai Winding, o tocador de trompa francesa Junior Collins, o intérprete de tuba Bill Barber, os saxofonistas Lee Konitz e Gerry Mulligan, o pianista Al Haig, o baixista Joe Shulman e o baterista Max Roach (este grupo não seria estanque, já que também se juntaram os trombonistas J.J. Johnson e Mike Zwerin, o pianista John Lewis, o baixista Nelson Boyd, o baterista Kenny Clarke, o tocador de trompa francesa Gunther Schuller e o baixista Al McKibbon). Foi uma fase em que, após os abusos de Charlie Parker se tornarem constantes na forma como tratava os seus colegas e a si mesmo, Davis se tornou mais rigoroso consigo mesmo, abdicando do uso de drogas e assumindo uma dieta vegetariana. Deste aglomerado de artistas, surgiu um dos grandes discos de Davis, que seria, somente, lançado em 1957: “Birth of The Cool”, resultando de sessões gravadas entre os anos de 1949 e 1950. Várias linhas de melodias independentes entravam em harmonização e em descompressão sonora, refutando, assim, o ideal agitado do bebop. A sua primeira viagem à Europa foi feita ao lado do pianista Tadd Dameron e do seu quinteto, tendo atuado, com eles, em Paris, cidade pela qual sentiu afinidade, dado o respeito que sentiu que era nutrido pelos seus em relação às comunidades de etnia negra, assim como aos seus músicos de jazz (viveu uma paixão com Juliette Gréco, cantora francesa). Porém, uma depressão na viragem para a década de 1950 atingi-lo-ia de tal modo que voltou a encontrar o conforto das drogas para se evadir, usando, desta feita, a heroína. Ainda com menos de 25 anos, já tinha três filhos, embora procurasse evitar a convivência com a sua família. A sua grande preocupação estava, assim, em atuar o máximo possível, embora acabasse preso por transportar heroína, pouco tempo depois de ter acompanhado a cantora Billie Holday numa das suas tournées.

Porém, logo em 1951, assinaria um contrato com a Prestige Records e pouco tempo perdeu para gravar música. Juntou o trombonista Bennie Green, o baixista Percy Heath, o saxofonista Sonny Rollins e o baterista Roy Haynes para a gravação de quatro álbuns: “The New Sounds” (1951) e três de 1956, sendo eles, “Miles Davis and Horns”, “Dig”, onde se assiste a uma maior recetividade ao bebop, embora em convivência com o R&B e com a música gospel, e “Conception”. Nesta fase, a vida de Davis era boémia, pedindo dinheiro a amigos para financiar o seu vício de heroína e as suas idas a casas de prostituição. O vício começava a beliscar o seu trabalho e as suas atuações, pelo que decidiu passar a viver em Detroit durante uma temporada, onde foi atuando em bares locais e procurando ganhar forças para deixar a heroína, inspirando-se no seu herói, o boxeur Sugar Ray Robinson. Para diferenciar o seu trompete dos demais, acresceu uma surdina, de forma a jogar com o ar que o instrumento recolhe e de o fraturar na sua expiração sonora, criando um autêntico efeito que soa a um wa-wa. Em 1954, está de regresso a Nova Iorque, focando-se no seu trabalho. Conseguiu, assim, lançar “Miles Davis Quartet” (1954, onde contou com o apoio de, entre outros, Max Roach, Charles Mingus e Art Blakey), “Miles Davis Volume 2” (1956), “Blue Haze” (1956), “Bags’ Groove” (1957), “Walkin’” (1957) e “Miles Davis and the Modern Jazz Giants” (1959, onde acolhe o jovem saxofonista John Coltrane). É um fôlego criativo impressionante, sustentado num auge musical de Davis, que é catapultado pelo trabalho do pianista Ahmad Jamal na forma como procura usar o vazio e o espaço em torno das atuações para tirar o melhor possível do ambiente das gravações em prol da sua música. Colocou, assim, uma harmonização bem mais tranquila e paulatina, fazendo-se valer dos cancioneiros americanos e populares para o mostrar.

Apesar de contar com um vasto rol de colaboradores, as suas relações com eles nem sempre foram as melhores, sendo frio e distante, para além de facilmente irritável. Uma operação à laringe, no ano de 1955, também não facilitaria isso, dado que, para além da sua atitude, a sua própria voz se tornou mais ríspida e gutural. Porém, nada que beliscasse a sua capacidade de fazer potenciar o melhor daqueles músicos que escolhia a dedo e que levava consigo às suas atuações, entre elas o festival de jazz de Newport, no ano de 1955, onde conhece um momento de ribalta para a comunidade de fãs do género musical. Isso levou-o a mais um contrato lucrativo, desta feita com a Columbia Records. Formou-se, entretanto, um quinteto fixo: Sonny Rollins no saxofone (substituiria John Coltrane pelos seus problemas com a toxicodependência), Red Garland no piano, Paul Chambers no contrabaixo e Philly Joe Jones na bateria (seria, também ele, substituído por Art Taylor, pelos mesmos motivos de Coltrane). Aliados a Miles Davis no trompete, estava composto o primeiro Miles Davis Quintet, que se estreou no Café Bohemia, na cidade de Nova Iorque. Duas sessões em 1956, com o acompanhamento do técnico de som Rudy Van Gelder, levariam à produção de quatro álbuns: “Cookin’ with the Miles Davis Quintet” (1957), “Relaxin’ with the Miles Davis Quintet” (1958), “Workin’ with the Miles Davis Quintet” (1960) e “Steamin’ with the Miles Davis Quintet” (1961), os últimos quatro discos de Davis com a editora Prestige. Com referências da música americana e com linhas melódicas e prolongadas de som, apenas contrastadas com o enérgico saxofone de Coltrane, o grupo firmou-se com identidade e personalidade, abrindo as portas do trompetista na Columbia Records: “‘Round About Midnight” (1957), mais um icónico álbum da discografia de Davis.

Por um breve período, voltou à Europa, juntando-se a outros músicos europeus por entre a França e a Alemanha, assim como com o Modern Jazz Quartet, que contava com alguns dos seus antigos colaboradores: John Lewis no piano, Milt Jackson no vibrafone, Percy Heath no contrabaixo e Connie Kay na bateria. Para além disso, colaborou em algumas bandas sonoras de cinema europeu com artistas residentes. Já em Nova Iorque, gravou “Milestones”, no ano de 1958, onde, com a junção de Cannonball Adderley no saxofone alto (fez regressar Coltrane e colocou-o com o saxofone tenor), começou a procurar explorar ainda mais a dimensão da harmonia, quebrando-a em diferentes modos musicais, ao invés de uma única centralidade modal. Novas mudanças no grupo fariam com que Jimmy Cobb assumisse a bateria e se juntasse, no piano, um jovem Bill Evans, também ele interessado no jazz modal, com quem contaria somente durante oito meses, sendo substituído por Wynton Kelly. O sexteto apresenta-se, assim, com “Jazz Track” (1958), que reúne, também, música composta na Europa por Davis.

Cansado de tamanha exigência laboral, decidiu fazer uma pausa, equacionando a reforma e até a docência em Harvard. Porém, após conhecer melhor Gil Evans, voltou a recuperar o ânimo para a gravação de álbuns e, assim, nasceu, logo em 1957, “Miles Ahead”. É um disco que conhece uma fusão entre o jazz, a música erudita e a própria música do mundo (dando origem à terceira corrente, um termo criado pelo compositor Gunther Schuller), onde Davis, ao invés do trompete, toca o flügelhorn, um instrumento de sopro mais volumoso e amplo que o primeiro. As transições entre as músicas, à boa maneira de uma orquestra, são engenhadas por Gil Evans, que também contribui para que Davis interprete os êxitos de George Gershwin em “Porgy and Bess” (1959) e os dos espanhóis Manuel de Falla e Joaquín Rodrigo em “Sketches of Spain” (1960), para além de composições de Evans. Davis gravaria, de igual modo, um álbum de músicas de bossa nova em “Quiet Nights” (1962). O seu trabalho emparelhado seria conservado num álbum póstumo, sendo ele “Miles Davis & Gil Evans: The Complete Columbia Studio Recordings” (1996), que arrecadaria um Grammy. Entretanto, em 1959, nasceria um dos principais clássicos da discografia de Miles Davis: “Kind of Blue” (1959), produzido por Teo Macero, que acompanharia a carreira de Davis desde então. Coltrane, Adderley, Bill Evans (Wynton Kelly faz a sua vez em “Freddie Freeloader”), Paul Chambers e Jimmy Cobb fazem, todos eles, parte deste disco tão marcante, que demarca o jazz modal e se desloca em definitivo das vibrações bop dos seus álbuns anteriores. Para a história, ficam as indeléveis “So What” e “All Blues”, referências do, ainda hoje, álbum de jazz mais vendido de sempre.

Davis seria detido em 1959, após, alegadamente, ter agredido um polícia, embora, de acordo com uma testemunha, ele tenha sido esmurrado por este agente. A sua atitude tornou-se ainda mais cerrada e contida, tanto que, no casamento com Frances Taylor, seria mesmo agressor, ele que voltara a refugiar-se no álcool e na cocaína. Apesar de gravar “Someday My Prince Will Come” (1961) e “E.S.P.” (1965), em que a sua esposa consta na capa, as consequências seriam nefastas para a sua reputação, embora se concentrasse em formar um novo quinteto, após os membros do quinteto anterior terem outras ambições para as suas carreiras. Assim, recrutou o saxofonista George Coleman, o baixista Ron Carter, o pianista Victor Feldman (substituído, pouco depois, por Herbie Hancock) e o baterista Frank Butler (também ele a ceder o lugar a Tony Williams) para formar o seu novo grupo. Conduziu-os à gravação de “Seven Steps to Heaven” (1963), “Miles Davis in Europe” (1964), “My Funny Valentine: Miles Davis in Concert” (1965, marcado por sonoridades mais pausadas) e “Four & More” (1966, com maior velocidade sonora), sendo os últimos três atuações ao vivo onde a liberdade criativa, rítmica e estrutural pauta a forma e o conteúdo da música produzida. Com a junção dos saxofonistas Wayne Shorter e Sam Rivers (em detrimento de George Coleman), nasceu um outro grupo, que ficou perpetuado em “Miles in Berlin” (1965).

No entanto, Davis veria algumas turbulências financeiras, dada a queda abrupta nas vendas dos seus discos. De 1966 em diante, das suas gravações, foram lançados os álbuns “Miles Smiles” (1966), “Sorcerer” (1967), “Nefertiti” (1967), “Miles in the Sky” (1968) e “Filles de Kilimanjaro” (1968), todos eles a deixar antever uma transformação na forma de produção musical de Davis, que abdicava do paradigma do jazz contemporâneo e o fazia derivar com um sentido mais funky e com sonoridades mais íntimas do R&B. Em muito pesou o contributo musical e compositivo de Hancock e de Shorter, em especial nos três últimos álbuns, onde já se denota a presença de instrumentos elétricos, como o piano (com Chick Corea), o baixo (a cargo de Dave Holland) e a guitarra. Em 1968, Davis casar-se-ia de novo, agora com a modelo Betty Mabry, alguém que ajudou Davis a descobrir a contracultura e a emergência do rock e do soul, nomeadamente com a emergência de Aretha Franklin, Jimi Hendrix e James Brown. Logo no ano seguinte, divorciar-se-ia de novo, após acusá-la de ter um caso com Hendrix. No entanto, as influências foram plantadas e “In a Silent Way” (1969) chega com a sua presença na figura do teclista Josef Zawinul e do guitarrista John McLaughin. Davis recorre à introdução-desenvolvimento-conclusão da sonata para se fazer mostrar na sua fase elétrica, que é, de igual modo, conhecida como o jazz fusion. Em 1970, seria pai de novo, desta feita com uma amante, Marguerite Eskridge.

Chegados, assim, aos anos de 1970, Davis lança “Bitches Brew”, que lança Jack DeJohnette na bateria, Bennie Maupin no clarinete baixo e Airto Moreira, brasileiro, em instrumentos de percussão vários. A experimentação e a improvisação com instrumentos eletrónicos, assim, prossegue em força, pautando-se com músicas longas e com muita manipulação de som, que distorce e quase que “psicadeliza” a música. Essa toada torna-se bem considerada no mundo do rock, que o convida a atuar em vários festivais do género, como o festival da Ilha de Wight, em que atuou para mais de quinhentas mil pessoas. Nas lojas, “Miles Davis at Filmore” (1970), uma prestação ao vivo onde é dado a conhecer o génio das teclas de Keith Jarrett e do saxofone e da flauta de Steve Grossman, precede “Black Beauty: Miles Davis at Filmore West”, outro concerto gravado onde se nota o imenso espaço concedido à improvisação dos envolvidos, apenas seguindo a ordem das “frases” pronunciadas pelo trompete de Davis. Era um momento distinto na sua carreira, em que percebia ter maior afinidade com as comunidades afroamericanas, mais interessadas na música pop, munidas de mais groove.

Assim, Davis, para além de gravar a banda sonora de um documentário sobre o boxeur Jack Johnson, inspirando-se nas questões políticas e raciais da primeira metade do século, grava “Live-Evil” (1971, uma miscelânea de músicas ao vivo com outras gravadas em estúdio), onde traz o baixista Michael Henderson, que havia acompanhado Stevie Wonder. Antes, havia colaborado com o guitarrista Sonny Sharrock e o baterista Billy Cobham. Neste ano, Davis deslocou-se pela primeira vez a Portugal, tendo sido o nome de abertura do Cascais Jazz Festival A própria descoberta do compositor vanguardista alemão Karlheinz Stockhausen e do britânico Paul Buckmaster abriu portas a que o trompetista se tornasse mais sensível para as questões da expansão e minimização na composição, que o ajudaram a procurar um som verdadeiramente único, orientado, de igual modo, pelo funk da banda Sly & The Family Stone, mas também pela criatividade do jazz de Ornette Coleman, que procurava desconstruir os preceitos do fazer jazz. Assim foi “On The Corner” (1972), onde Davis assumiu o órgão elétrico em busca de colocar em prática todas essas nuances. Porém, sentiu-se desanimado por ver que a sua música não colheu muita atenção no seio da juventude afroamericana.

Davis teria um acidente aparatoso em 1972, partindo ambos os tornozelos. Voltou-se, de novo, para a cocaína para refrear as dores, assim como para fármacos. Não obstante, continuou a trabalhar e a lançar discos, desde concertos (“In Concert”, de 1973) a compilações (“Big Fun”, de 1974, que apresenta algumas longas e inéditas improvisações da sua criação). Assim continuou mais alguns anos até 1975, período do qual advieram os discos “Get Up with It” (1974, uma compilação de noventa minutos de mais material inédito) e os concertos em Osaka (“Agharta”, de 1975, e “Pangaea”, de 1976, condensam a sua constante descoberta pelo jazz fusion e apresentam o saxofonista Sonny Fortune, os guitarristas Pete Cosey e Reggie Lucas, o baterista Al Foster e o percussionista James Mtume) e no Carnegie Hall (“Dark Magus”, de 1977). Os problemas prolongados e rotineiros de saúde com os quais Davis se deparou, para além de uma franca dependência de álcool e drogas levou-o a pôr um ponto final na carreira. Porem, seria um ponto e vírgula que se prolongaria por cinco anos, indo até 1980. Nesse período, reconheceu as suas fragilidades e vulnerabilidades e cuidou o que podia da sua saúde, com os recursos que lhe restavam, até voltar aos estúdios e gravar “The Man with the Horn” (1981). Retomou precisamente onde parou, sempre na onda do funk e da improvisação e bem distante das normas convencionais do jazz, juntando o saxofonista Bill Evans, os guitarristas Barry Finnerty e Mike Stern, o baixista Marcus Miller, o baterista Al Foster e o percussionista Sammy Figueroa.

Grande parte destes nomes constam nos concertos que são gravados em “We Want Miles”, que valeu o primeiro Grammy em vida do músico. Porém, em 1982, sofreu um AVC que lhe paralisaria a sua mão direita temporariamente. Para a recuperação, recorreu à acupuntura, para além de abdicar definitivamente do uso de álcool e de drogas. A grande responsável por esta mudança estaria no apoio dado pela sua companheira de então, a atriz Cicely Tyson, que também o incentivou a encontrar-se artisticamente ao desenhar, algo que a escultora Jo Gelbard também exploraria. No ano seguinte a este percalço, lançou “Star People”, onde convidou o guitarrista John Scofield e o percussionista francês Mino Cinelu a colaborar consigo, à imagem do que fez em “Decoy” (1984), ainda mais eletrónico que o seu antecessor, apesar da presença do saxofonista Branford Marsalis e do teclista Robert Irving III, que compôs algumas das suas músicas. Com vários destes membros, percorreu a Europa em inúmeros concertos, tendo conhecido o trompetista Palle Mikkelborg, o dinamarquês que compôs e produziu “Aura” (1989), um outro disco de Davis. No entanto, antes disso, mais uma doença para o extenso diagnóstico da sua vida: a diabetes. Nesse ano de 1985, assinaria um contrato com a Warner Bros., onde abdicou dos seus direitos de publicação, embora ainda produzisse mais um álbum, “You’re Under Arrest”, em que, num claro assumir de posição contra a guerra, a poluição e o racismo, compila covers de “Time After Time”, de Cyndi Lauper, e de “Human Nature”, de Michael Jackson. Assiste-se, assim, a uma virada mais pop, dado que considerava que muito do jazz produzido para Broadway era, de facto, um fenómeno pop.

Nos últimos anos da sua vida, Davis fez algumas colaborações pontuais com alguns artistas, tais como a banda Toto (no instrumental de “Don’t Stop Me Now”), com o cantor italiano Zucchero (numa versão de “Dune Mosse”) e o ator Bill Murray, tendo contracenado com ele numa comédia de 1988, “Scrooged”. Dois anos antes, havia lançado “Tutu” (1986), um disco em que Davis trabalhou com ferramentas de estúdio mais ou menos modernas, tais como sintetizadores e com esquemas de baixo, assim como com o uso de samples. Receberia, com este trabalho, mais um Grammy Award, algo que não aconteceu com “Rubberband”, um conjunto de sessões gravadas um ano antes. Os seus problemas de saúde adensaram-se no final dos anos de 1980, numa fase em que já tinha lançado “Music from Siesta” (1987, com Marcus Miller) “Amandla” (1989), onde consegue importar novas influências, nomeadamente do guitarrista belga Jaco Pastorius (“Mr. Pastorius”) e da música caribenha, em especial do seu zouk. Postumamente, para lá de algumas bandas sonoras que compôs ainda em vida e de vários concertos com causas sociais subjacentes, lançou “Doo-Bop” (1992, com grandes sinais daquilo que seria a cultura hip-hop futura) e “Miles & Quincy Live at Montreux” (1993, ao lado do conhecido músico Quincy Jones).

Miles Davis teria um final de vida difícil, já que a medicação que tomava para debelar a pneumonia que contraíra o tornava irascível e agressivo com os demais. No entanto, morreria nos braços da sua última parceira, Jo Gelbard, quando lhe desligaram as máquinas que o mantinham vivo, no dia 28 de setembro de 1991. Morreu, assim, aos 65 anos, no estado da Califórnia, no mesmo ano em que visitou, pela última vez, Portugal, após ter passado cá por mais duas ocasiões. Para a eterna história do jazz, fica uma transformação constante da sua personalidade musical, que abdicou das premissas fundamentais do jazz (algo que desencantou Bill Evans) para se dar a conhecer às perspetivas do rock e do mundo pop. Para a história, está uma capacidade indiscutível de inovação e de transcendência, capaz, de igual modo, de ser crítico e polémico, com mais ou menos razão, embora sem beliscar a sua posição como referência artística em toda a sua dimensão. Daí a importância de improvisar e de experimentar, de invadir espaços novos, onde pudesse confrontar tradições e fazer valer os poderes simbólicos para se fazer representar de tantas e variadas formas. A sua eternidade, para além de diversos Grammy Awards, fez-se escrever nos galardões que recebeu no final da sua vida, desde estados a universidades, para além de um reconhecimento no Rock n’ Roll Hall of Fame.

Miles Davis é, indistintamente, um dos marcos do jazz. Mais do que ser verdadeiramente capaz e prodigioso nos seus moldes mais tradicionais, fez do saltar barreiras entre géneros uma imagem de marca, que, de um certo modo, permitiu deselitizar o jazz dos seus moldes clássicos e de o fundir com as expressões populares e menos eruditas. Apesar de possuir um percurso de vida que está longe de ser imaculado, graças a uma personalidade violenta e abusiva, no que toca à dimensão musical e artística, é, ainda hoje, referenciado como alguém que quebrou preconceitos e obstáculos para a afirmação de jovens artistas das comunidades afroamericanas (o pianista Robert Glasper deu uma nova vida à música de Miles Davis no seu álbum “Everything’s Beautiful, de 2016, ao lado de uma série de outros músicos). A partir do seu trompete, soltou as notas certas para uma carreira ilustre e metamorfoseadora, em que a estabilidade foi algo que, simplesmente, não existiu. As questões foram sempre muitas, as respostas ainda mais e a música, sempre a música, conseguiu ir para lá de tudo isso, deixando as palavras para o silêncio. Assim foi e assim continua a ser o legado musical e artístico de Miles Davis.

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