O táxi do artista
Colocar a primeira, levantar o pé da embraiagem e pressionar ligeiramente o acelerador, e já está: estamos em movimento. Era assim que José Sebastião, ou o “Sacas”, como era conhecido na praça, começava cada serviço. Gostava de brincar, era brincalhão, “Prontos”, mas não me leve a mal, se quiser eu calo-me. Mas não se calava. Não lhe era possível essa ideia de conduzir sem falar. Falar e andar, no carro, era uma acção mutualista. Talvez tivesse aprendido a conjugar, no seu corpo, os dois verbos ao mesmo tempo e, Alterar isso só à porrada, ou com um acidente de viação. Estou a brincar! Lá repetia ele, com o táxi em andamento.
Taxista de praça há quase trinta anos, tinha começado por receber a sua licença como uma prenda do padrinho, também ele taxista a vida toda. Não era um desígnio, ou um sonho realizado, mas a sua profissão, o seu ganha pão, na cidade. Tinha lá chegado menino e sem grandes sonhos, que isso de sonhar, naquela altura, era coisa para filhos de doutores e para senhores de nascença. Não lhe lançava grande destino, a sua vida. Nascido para os lados das serras da Lousã, tinha começado como pastor de cabras e ovelhas e, desse tempo, lembrava os medos da montanha, Lá em cima, não tens ninguém que te ajude, ninguém que te faça companhia. Ninguém, é como quem diz, porque, das ovelhas e das cabras, guardava grandes memórias de discussões argumentativas, sobre tudo e nada, As ovelhas preferem a erva fresca das charnecas, já as cabras preferem as moitas ressequidas das encostas mais íngremes. Foi um bom tempo, mas quando se é jovem, todo o tempo é bom, nem há chuva ou gelo que nos façam amansar, tal é a ânsia de existir.
O “Sacas” tinha disso em demasia desde muito novo. Ânsia de existir era o que o movia pelas serras, pelos caminhos, pelas estradas e, algures numa cadeira da terceira classe, nasceu-lhe a ânsia da poesia. Eram já muitas, e essa nasceu como só mais uma. Primeiro, com rimas sonantes sobre a vida nos campos, e só mais tarde sobre a vida nas cidades. Mas tudo nele o movia para a ânsia criadora de colocar as palavras alinhadinhas, numa folha pautada. Alinhar na horizontal e depois na vertical tranquilizava-lhe o espírito. Era coisa de prazer, de desânsia, coisa de realização, que lhe dava impressão de tudo fazer ainda mais sentido. Era coisa boa, mas que não lhe alimentaria a boca. Nem a sua boca, nem a boca dos filhos que, inevitavelmente, viriam. E vieram. Com o ordenado do táxi, felizmente, vieram dois, que com o de poeta nunca chegaria nenhum.
O senhor é um poeta! Era a frase que mais gostava de ouvir dentro do seu táxi. Tantos foram entrando e saindo ao longo dos tempos, que lá lhe ganhou a coragem de começar a juntar os seus poemas de meninice e a fazê-los publicar em fascículos a que ia acrescentando a numeração romana I, II, III… Já ia no XXIV quando lhe entrou no táxi o mais estranho dos passageiros até à data; apesar disso, lá se fez à conversa de rotina, Para onde vai o senhor? Poço do Bispo 64 e estou com pressa. Muito bem, vamos então acelerar até onde a viatura deixar. O Passageiro, que era lá atrás, no banco à esquerda, não respondia. Eram os piores para transportar, os mudos carrancudos. Há pessoas que acham que o taxista é um motorista, uma peça mecânica que o veículo necessita para poder avançar, mas o “Sacas” sabia-se mais do que isso. Não admitia que o ignorassem. Antes odiá-lo do que ignorá-lo. Pegou num livro, dos que mantinha sempre no porta-luvas e estendeu-o ao Passageiro, Uma oferta para o senhor! Obrigado, mas prefiro não aceitar. Não aceitar?! Nunca se recusa uma prenda. Está bem, e quanto me vai custar essa prenda? Nada. Já a corrida, essa, irá pagar, mas não lhe estou a vender mais nada. Para mim, os livros são para oferecer, não para vender. O Passageiro pegou no livro e guardou-o numa mochila que trazia consigo, Leio mais tarde então. Quando chegar a casa? Não vou para casa. Para onde vai então? Para o Poço do Bispo 64, já lhe disse. Muito bem, e o que há lá? O senhor não vai parar de me fazer perguntas até eu lhe responder, pois não? Não. Vou ao lançamento de um livro de um escritor muito conhecido, presumi que me tinha reconhecido e que me estava a tentar obrigar a conhecer o seu trabalho. Como assim? Não me reconhece? Não. O senhor escreve e leva no seu táxi o editor mais importante do país e não me quer convencer a publicá-lo? Não vejo porquê, nem como. O senhor lá sabe da sua vida e eu da minha. Eu preocupo-me em escrever e, pelos vistos, o senhor em publicar, não vejo como poderíamos trocar de lugar. É normal os escritores tentarem convencerem-me a publicá-los. E o senhor deixa? Às vezes não tenho outra opção. Para os calar? Sim, pode-se dizer que sim. Acha mal? Não. Como lhe disse, o senhor é que sabe da sua vida, mas isso, se não se importa, seria como o senhor dizer a um escritor sobre o que deveria escrever. Admito que já o fiz… o senhor tem a chamada sabedoria popular, como se chama? Tal e qual está aqui neste cartãozinho do tablier, José Sebastião. Senhor José Sebastião, eu… Chegámos ao seu destino. Já? Sim, Poço do Bispo 64, é aqui. São sete euros e trinta cêntimos.
O Passageiro saiu sem dizer mais nada, e o “Sacas” agradeceu por isso. Conhecia essa tentação de um qualquer grande, maior do que ele próprio, lhe vender a ideia do sucesso sobre aquilo que escrevia. Fugia disso a sete pés, e o seu táxi era a forma mais rápida de se proteger de coisas que sabia que não lhe estavam destinadas. Escrevia por prazer, não por interesse, e sempre sentiu que passar a fronteira das folhas de papel para as folhas de dinheiro, o lançaria novamente na ânsia e no desconhecido. Protegido pela distância quilométrica, nunca saberia que, ali na beira da estrada, nascia uma outra ânsia, mas essa não era sua, mas do Passageiro Editor.