O urso russo

por Pedro Saavedra,    22 Março, 2022
O urso russo
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Oleg olhava para ele sem lhe compreender preocupação. Era só um urso, e a sua fama, apesar de o preceder, parecia claramente exagerada. Tinham-no trazido para ali num camião fechado e atravessado meia estepe para o entregar naquele posto de controlo; É a diversão possível! Dizia-lhes o camionista. Vivemos tempos estranhos! Respondia o camarada de Oleg, Boris, enquanto o camião, ainda típica máquina soviética, acelerava numa fumarada tóxica a caminho de não sabiam onde.

Boris não era como Oleg. Boris era um soldado a sério, não um inventado à pressa como Oleg. Tinha-se feito soldado demasiado novo para se lembrar de outras coisas que tivesse sido antes, até porque na guerra não lhe tinham faltado tarefas. Era um bom soldado e sabia que Oleg nunca o seria. Oleg ainda pensava antes de disparar e isso acabaria por ser a sua danação, por isso mantinha-o sempre debaixo de olho. Tinham-se feito camaradas muito cedo, no início da campanha do Dniepre, e descontados os que já tinham partido, aqueles dois eram os mais antigos da Divisão, por isso Boris não queria perder mais tempo; Vamos, Camarada Veterano, temos de pôr mão à obra ou, se preferires, mão ao Urso!

O pobre animal olhava para aqueles dois soldados com o espanto comum que o contacto inter-espécie pressupõe. O urso já não ia para novo, e do mundo só conhecia o que o olfacto lhe trazia à jaula, não o compreendia, e de urso já só lhe mantinha a forma, o desenho, se preferirem. Nascera de mãe-ursa de jardim zoológico e dele só se esperava que comesse e que fizesse um ou dois truques. Mas já nem isso esperavam dele. Agora era apenas urso para fazer rir e para isso bastava-lhe existir dentro da jaula que tinham feito para si. Fora da jaula e não acorrentados, os dois soldados pareciam felizes na sua tarefa de o escoltar para o meio da barricada. Era uma barricada improvisada a meio-caminho de nada. Ali, não havia nada. Apenas um amontoado de pedaços retorcidos de betão e metal, dois soldados, um urso e ainda os vestígios do fumo de um camião.

Foi Boris que perdeu primeiro as estribeiras. O animal não queria sair da jaula que o defendia daquele típico e perigoso baldio de guerra. Tinham sido demasiadas as explosões no caminho entre o Zoo decrépito de onde tinha partido e a chegada ali. Boris, agarrando-o com cada vez mais força, puxava-lhe a corrente para o impulsionar para o meio da barricada, como era suposto. De  puxar a insultar e pontapear foram segundos, tal era pouca a sua paciência. Boris era conhecido por isso mesmo. O ferver em pouca água, era a sua marca de combate. Dizia-se que logo na recruta se tinha colocado à frente das rajadas mais mortíferas, saltado as valas mais profundas e dado os saltos mais em frente, mas isso era o que se dizia na recruta, e o que se dizia na recruta valia o que valia. Oleg pôs-lhe a mão no ombro e suspirou; Camarada, o bicho é russo! 

Começaram a rir com uma satisfação que há muito não sentiam, daquele rir em que as lágrimas acabam por escorrer pela cara abaixo. Daquele rir que deixa trilhos num rosto pintado de pó e negritude. Daquele rir que evita que reparemos na coluna de tanques que se aproxima ao longe. Daquele rir que mesmo que nos expluda o corpo nos faz ser felizes até ao último momento. Riam e choravam enquanto o animal, o tal urso russo, os olhava com a mesma doçura que olhara durante anos para os seus tratadores e visitantes humanos. Houvesse ali outro urso e dir-lhe-ia; Quem são estes animais? Ao longe, a coluna de tanques aproxima-se.


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