O vício da estrada
Faz já dois anos que surgiu uma oportunidade única na minha vida, uma bolsa de doutoramento que levaria também a dividir o meu quotidiano entre duas cidades que distam duzentos quilómetros uma da outra. Uma seria Lisboa, cidade com a qual convivi durante muitos anos e que sempre considerei como a minha cidade de referência. A outra seria Coimbra, uma cidade que, embora não a conhecesse tão bem, sempre mantivera um carinho especial pela mesma e hoje, que a conheço melhor, já é uma cidade que faz parte de mim. Entrar num projecto que me levaria a ter dois locais de trabalho diferentes, distantes um do outro, parecia-me a mim e às pessoas que me são mais próximas uma ideia de loucos, ainda para mais desconhecendo a realidade dos locais de trabalho em questão. Contudo tinha várias razões para o fazer, seria uma oportunidade diferente e ambiciosa onde, praticamente já (ou ainda) a meio desta jornada, não sei ao certo se triunfarei ou fracassarei. Sair da zona de conforto e conhecer novas realidades era uma mais valia e hoje gosto muito de trabalhar em ambos os lados, seja de duas em duas semanas, seja semana sim semana não, ou seja até mesmo quando calha. Nunca pensei que aquilo que estivesse mesmo a precisar era de uma boa dose de estrada, bastante estrada, algo que consegue corresponder às minhas expectativas e que se tornasse saudavelmente viciante pelos melhores motivos.
Nunca percebi muito bem o mito do “vício da estrada” porque achei que fosse apenas e só um mito. Vi sempre este termo associado a diversas situações de domínio épico ou ficcional como histórias de aventura, viagens de músicos e de artistas, estilos de vida nómada de algumas profissões, ou até aos relatos dos motociclistas vândalos dos Hells Angels. Nunca na vida poderia achar que este termo pudesse estar associado a um modesto doutorando que, ao fim e ao cabo, nunca soube o que quis da vida e que resolveu trocar alguns dos seus anos por uma aventura baseada em gastar pneu no asfalto, mas que no fundo é muito mais do que isso. É de facto pouco poético e desinteressante considerar um caso típico de vício da estrada alguém que transporta os seus compostos sintetizados em laboratório no cinzeiro do seu carro, juntamente com cálculos e medidas na mochila, ao som alto do rádio ou de um álbum de rock que tenha no porta luvas. Torna-se no entanto um vício resfriar a tensão dessa mesma vida ao volante, ainda para mais quando as tarefas que têm de ser feitas não correm bem num dos lados e quando os problemas surgem. Acabei por ganhar um apreço pela condução que nunca tivera pois, só de entrar num carro e pensar que teria que percorrer uma estrada com trânsito ou sem trânsito, deixava-me inevitavelmente stressado.
O efeito da conjuntura das horas de trabalho diárias, das noitadas, dos problemas, das incógnitas, das dúvidas ao longo de um trabalho de investigação faz com que procuremos algo que nos consiga libertar de tais sensações constrangedoras. Existem cada vez mais casos de doutorandos que acabam por não conseguir aguentar a pressão e de alguns que sofrem perturbações de ansiedade e depressão, algo que o vício da estrada consegue por vezes aliviar. Ao longo de cada viagem surgem pensamentos e ideias que podem vir a ser benéficas para a semana seguinte em qualquer um dos lados que me espera. Acabo sempre por recordar as palavras do poeta Al Berto no seu livro O Anjo Mudo e que me marcaram para sempre: Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos, purifica. Neste caso, a melancolia, o stress e o desânimo quando as coisas não correm como o previsto, são purificados e por vezes curados com viagens pela estrada sempre que saio de qualquer uma das cidades, com novos desafios em vista e esperando sempre que as coisas corram um pouco melhor.
Nunca me considerei um exemplo para ninguém e muito menos agora com este estilo de vida que não acho que tenha nada de maior ou menor comparado com outros. Para quem nunca se imaginou a ter um emprego a sério, porque sempre fui demasiado hiperactivo e tive sempre uma dificuldade enorme em escolher um caminho que fosse de todo linear, estar com uma vida precária até pode ser algo que não custe assim tanto. Há que ter a noção que um dia essa precariedade irá acabar e um dia será inevitável ter que dar o salto para a estabilidade. As notícias mais recentes quanto à carreira de investigação em Portugal não são as melhores e não sei o que me reservará o futuro, tal como no passado nunca o soube. Restam-me ainda mais dois anos de estrada, muita estrada para percorrer, um caminho muito duro que envolve desgaste físico e mental e situações que me possam colocar em desespero. Com o valor de uma bolsa, que tem de dar para tudo, há que jogar muitas vezes entre o vício e o dever em cada um dos locais onde trabalho pois faço sempre por dar o meu melhor. Quando o cansaço se apodera e os níveis de saturação sobem em ambos os lados sei perfeitamente que estou a precisar de uns bons quilómetros comigo mesmo mas, até ter esse escape, há sempre trabalho para terminar.
Frequentemente, e em tom de brincadeira, peço a amigos meus biólogos que me clonem ou aos engenheiros físicos que se despachem a desenvolver o teletransporte, aquele mito da ficção científica que aparece em filmes como Star Trek e que me facilitaria muito a vida. Como tal não é exequível contento-me com um vício de estrada que só é emocionalmente colmatável quando existe um bom suporte familiar e amigos com que se possa contar. Nesse aspecto sinto-me um sortudo, assim como me sinto sortudo nos modestos sucessos que tenho tido pois considero que, acima de tudo, tive sempre mais sorte do que juízo em grande parte das ocasiões onde fui posto à prova. Por vezes sinto-me que caminho sob um pequeno fio e que posso cair a qualquer momento, ou numa estrada perigosíssima onde me posso despistar, tudo isto num sentido figurado. Até que tal aconteça, se eventualmente acontecer, continuarei este caminho a contar com aquilo que mais importa. Gosto das duas cidades onde passo o tempo pois cada uma tem as suas vantagens e desvantagens. Gosto de estar num ambiente académico e científico onde deste muito cedo me senti sempre como peixe na água. Gosto de ciência como gosto da estrada e assim continuarei com este vício, em dias de sol ou em dias de trovada, caminhando em direcção a um horizonte que ainda parece ser muito difícil de se alcançar.