O vírus é perigoso e mata. Mas a fome, a indigência, a depressão e o desemprego também

por Cronista convidado,    8 Julho, 2020
O vírus é perigoso e mata. Mas a fome, a indigência, a depressão e o desemprego também
Capitólio, Lisboa / DR
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Há dois dias foi anunciado o programa do Avante e do Recreio. Apesar de não estar ligado a nenhum destes eventos, fui espreitar as diversas notícias sobre ambos os assuntos e as caixas de comentários explodiam de raiva e condenação. De profecias de desgraça, até ao simples repúdio, com imensos insultos e teorias da conspiração pelo meio.

Simultaneamente, ontem, o Jornal de Negócios trazia um estudo que dizia que os contágios não têm sucedido nas actividades de lazer, mas sim nos locais de trabalho e em contexto doméstico. Hoje, leio um comunicado da AHRESP que informa que 38% dos restaurantes tencionam pedir insolvência. Eu repito: bem mais de um terço dos restaurantes deste país vai, provavelmente, falir. Esta semana estive em Lisboa. Uma rápida pesquisa revela que uma parte significativa dos hotéis ainda estão encerrados. Em conversa com o recepcionista do hotel onde fiquei, fico a saber que, dos 12 hotéis em Lisboa pertencentes à mesma cadeia, apenas 2 já reabriram e ainda com parte significativa da equipa em Lay Off porque muitos dos serviços não estão disponíveis e apenas uma das alas do hotel está a receber hóspedes, por manifesta falta de procura.

Qualquer pessoa atenta à informação sabe que os números dos divórcios dispararam, o consumo de fármacos ligados à saúde mental também, a violência doméstica aumentou, os suicídios também, assim como a criminalidade, o número de sem abrigos ou a fome. Rastreios e tratamentos médicos adiados são aos milhares. O desemprego já atingiu números históricos e isto ainda não é nada. Deixem só passar o Verão… Há umas semanas lançámos uma música nova do Agir, cujas receitas revertem a favor da SOS Voz Amiga. O seu responsável dizia-nos que num mês normal atendiam 700 chamadas. Neste momento estão a receber 4000.

Ontem, apanhei por acaso a manifestação da malta dos feirantes, carroceis e similares, gente sem poder reivindicativo, com actividades nómadas, sazonais e que ainda estão proibidos de trabalhar. Se não forem ajudados como vão aguentar até à próxima primavera? É este o retrato que eu tenho do país. Portugal é um país de serviços, porventura até excessivamente dependente do turismo. Para muitas destas actividades o Verão será o canto do cisne e o Outono trará a miséria, a falência e o desemprego. Por estes dias, grava-se o Eléctrico no Capitólio. Para além do respeito pelas regras por parte do público, comoveu-me ver a disciplina e sacrifício de todos aqueles profissionais que ali estão a trabalhar, dias inteiros com máscara posta, oxigénio limitado, e que não prevaricam pelo respeito ao outro e amor à sua profissão. Todos temos noção que um passo em falso poderá colocar todos em risco.

A maioria dos portugueses ainda não sentiu a crise, porque não teve rendimentos cortados, nem ameaça de desemprego. Ainda bem. Infelizmente, também serão afectados, nem que seja através dos brutais impostos que vão ser inevitáveis para fazer face aos subsídios, aos resgates, à dívida, ao abrandamento económico, à resposta social. Quando forem comentar o anúncio de uma qualquer nova actividade cultural, pensem nisso. Não imaginam como isso influi os decisores políticos, muitos deles reféns atentos das implacáveis e efervescentes redes sociais. Esperem primeiro para verificar se as regras são cumpridas, o que até agora tem acontecido em todos os eventos, restaurantes e hotéis que frequentei, ao contrário, por exemplo, de diversos transportes públicos e de algum contexto fabril. Sejamos responsáveis, mas corajosos. Cumpridores, mas audazes. O vírus é perigoso e mata. Mas a fome, a indigência, a depressão e o desemprego também.

Texto escrito por Vasco Sacramento
Vasco Sacramento é director da Sons em Trânsito, agência de concertos que representa nomes como Ana Moura, Pedro Abrunhosa, António Zambujo, Ana Bacalhau, Elisa Rodrigues, Deolinda, Gisela João, Mayra Andrade ou Carolina Deslandes. É também promotor do Festival F e detentor da concessão da sala de espectáculos Capitólio, em Lisboa.

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