O vizinho

por Nuno Miguel Guedes,    2 Agosto, 2021
O vizinho
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“Fazemos os nossos amigos, fazemos os nossos inimigos, mas Deus faz o nosso vizinho.”
G. K. Chesterton

Por vezes, para apaziguar o pessimismo que sob temperaturas estivais passa a um nível efervescente detenho-me a considerar o tanto que o ser humano conseguiu para elevar-se na lama. A arte. A literatura. A arquitectura. A música. O cinema. As formas de organização social, geridas por um Estado de Direito e que permitem liberdade individual e possibilidade de escrutínio aos que detêm o poder. Os grandes filósofos, que nos ensinam a pensar. E mais haverá que seria ocioso aqui enumerar. Tudo conquistas dignas, extraordinárias, contra todas as possibilidades e que tendem a engrandecer a natureza humana. Mas depois lembro-me dos vizinhos.

O leitor sabe, que eu sei que sabe. Vamos lá ver: um vizinho em si não é coisa má. É necessária e é uma forma orgânica de comunidade que muitas vezes nos ajuda e até salva. Naturalmente esse tipo de altruísmo aparece ao mais alto nível e sem surpresa nas grandes tragédias: lembrai-vos do início da pandemia e do confinamento, quando saltitavam os vídeos de vizinhos confinados cantando e acenando para outros vizinhos. Que comovente maravilha. E agora que já vamos no segundo ano desta situação, a coisa continua solidária, alegre, com manifestações espontâneas de amizade entre vizinhança e…ah, espera.

Não se julgue que o vizinho é uma tipologia moderna, no entanto. Não, amigos: há milhares de páginas da nossa literatura que tentam caracterizar ou defender o sujeito ali do lado ou do andar de baixo. Por mim bastaria uma reunião de condóminos, mas isso sou eu. Chesterton, que ali está em epígrafe, concordaria comigo, como aliás George Bernard Shaw que deixou esta lapidar verdade: «Se ofenderes o teu vizinho é melhor não o fazeres pela metade». O romântico Schiller lembra a categoria de “mau vizinho” para lembrar que nem o homem mais bondoso consegue a paz se isso não agradar ao dito cujo. O Código Civil está cheio de artigos que visam justamente regular e confirmar a existência desta espécie. Por outro lado também existem as apologias mas normalmente são feitas por homens de enorme estatura moral e bondade, como Martin Luther King,Jr que confundem o amor ao vizinho com o amor ao próximo. Percebo mas a prática muitas vezes torna-se difícil.

Por mim, prefiro o anonimato discreto, o cumprimento cortês mas lacónico e o silêncio angustiante do elevador partilhado. Mais a mais agora, em que registo uma guerra surda com um desses cavalheiros acima descritos que me atormentam a paz e o sossego com queixas injustificadas. Como uma que ficará nos anais: na última passagem do ano, com duas pessoas a jantarem na sala, confinados que estávamos, ouviu-se gritos do andar de baixo e a tradicional vassourada no tecto, reclamando contra o barulho. Estava a televisão ligada, imagine-se. E eram 21 horas numa passagem de ano.

Enfim. Percebeis agora o motor desta crónica. Só devemos escrever sobre o que sabemos, ensinaram-me os mestres. E sobre este tema tinha muito mis para dizer, só que quero que esta coluna continue acessível a todas as idades. Mas sempre vos direi, parafraseando um célebre slogan: poderíamos viver sem vizinhos? Poderíamos, mas não seria a mesma coisa. Seria melhor.

Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.

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