O Voo das Andorinhas

por Guilherme Gomes,    4 Janeiro, 2018
O Voo das Andorinhas
‘L’amour l’après-midi’, realizado e escrito por Éric Rohmer
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As andorinhas gritam enquanto desenham círculos no ar. Estou numa espécie de terraço, num convento em Montemor-o- Novo. É verão e o sol apresenta as suas despedidas. Sensibilizado para a possibilidade de no voo das aves poder ler uma mensagem, pergunto: porque voam em círculo as andorinhas?

Procuro o significado da forma: pego num lápis, desenho numa folha uma curva; continuo a curva até regressar ao ponto inicial; não paro; sigo com o lápis sobre o caminho já riscado até que se torne inacessível a grafite. O lápis sempre desenhando o mesmo movimento, a figura cada vez mais funda na folha, cada vez mais estática, segura, ancorada. Ainda assim o movimento do braço, do lápis. O círculo como rasto, resto de movimento, contendo o movimento, sendo figura posta em plano do movimento, que é outro.

Travo tradicional chinês

As andorinhas voam em círculo para não pousarem. Leio que as andorinhas fazem tudo, ou quase tudo, enquanto voam. Até dormir é uma hipótese. Animal em permanente movimento, como homem permanentemente pensando, ou rio correndo. O círculo é recinto para que, voando, se estabeleçam. É, apesar de tudo, uma paragem.

Talvez façamos a vida num círculo. É certo que todos os anos cumprimos pelo menos um: cada dezembro somos confrontados com o seu fim, cada janeiros com o início de novo recalcamento.

Quão fundo estaremos metidos na folha em que esse círculo se desenha?

Imaginando que círculos habitamos, somos peritos em encontrar no que nos rodeia símbolos: num dos primeiros dias do ano, indiquei a um casal de velhos o caminho para a maternidade, em Lisboa; depois descobri uma ruína num lugar onde já tantas vezes passei. Logo à entrada do ano conheci Marta numa viagem de comboio. Marta tem sete anos, estávamos os dois a trabalhar, debruçados sobre a mesa, ela desenhando letras num caderno de linhas, eu combinando palavras no computador. A certa altura, ainda com o constrangimento de sermos desconhecidos, sugeri que víssemos um filme. Vimos O MEU VIZINHO TOTORO, de Hayao Miyazaki. Marta ainda agora entrou na escola, círculo de diâmetro quilométrico, e não sabe ler. Narrei-lhe o filme, sussurrando para não o narrar à carruagem toda. No final, comentei que tínhamos fintado a viagem, que a tínhamos encurtado com o filme. Ela torceu o nariz, com a sinceridade de quem reconhece a verdade, não deve nada a ninguém e fez uma viagem muito mais longa que a minha. Aconselhei-a, quando ela saiu, ali para os lados de Coimbra, a procurar o autocarro com forma de gato. Ela sorriu, como se isso fosse impossível, e eu imaginei que ela, de facto, apanhava o autocarro – só para imaginar a surpresa. Da rua, ela acenou-me em jeito de despedida.

Tantos círculos prometidos: o círculo que é um ano, o que é a Escola, o que é a Vida. Quantos cabem neste último? Um círculo se inscreve noutro, e em mais um, até ao suportável. O movimento e a quietude, em profundo diálogo na mais perfeita forma geométrica.

E pensamos: é possível que Cartola se não tenha enganado:

Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho

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